quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Viriato da Cruz: Serão menino

Antes de conhecer Mia Couto eu conhecia a literatura africana.  Antes de saber que Mia Couto é branco eu sabia da literatura de autores africanos negros. Na cor, na pele, na voz, no grito do verbo dei de cara com a literatura africana nos “primórdios” da web, através de sites africanos que já foram soprados para longe.

Bons tempos aqueles em que a rede era um fascinante arquipélago com ilhotas pululando culturas deliciosamente estranhas. Foi mergulhando naquele admirável mundo novo que descobri a rica literatura em verso e prosa da África. Salvava uma coisa aqui e outra acolá. Muito se perdeu disquetes afora. Com o tempo aprendi a fuçar feito porco atrás de trufa. Nesse cavucar encontrei uma rara Antologia de Autores Africanos: Do Rovuma ao Maputo, organizada por Carlos Pinto Pereira, em 1999, a partir de arquivos esparsos na web. Para meu espanto a Antologia trazia algumas pérolas que admirara antes e, para minha felicidade, alguns dados biográficos de alguns autores.

Não sou muito ligado a datas. Para mim todo dia é dia de todo dia e do quê e de quem quiser o dia. Portanto, foi com o encerramento da Semana da Consciência Negra, no Brasil, que se iniciou a minha Semana da Literatura Africana, no Falas ao Acaso, (re)publicando alguns poemas de grandes autores africanos, como José João Craveirinha, Geraldo Bessa, Viriato da Cruz. Você que já leu Pena e Fábula, do moçambicano José Craveirinha (1922-2003) e O menino negronão entrou na roda, de Geraldo Bessa (1917-1985)..., hoje fica com o magnífico Serão Menino, do angolano Viriato Francisco Clemente da Cruz (1928 - 1973)



Serão Menino
Viriato da Cruz

Na noite morna, escura de breu,
enquanto na vasta sanzala do céu,
de volta das estrelas, quais fogaréus,
os anjos escutam parábolas de santos...

na noite de breu,
ao quente da voz
de suas avós,
meninos se encantam
de contos bantus...

"Era uma vez uma corça
dona de cabra sem macho...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... Matreiro, o cágado lento
tuc... tuc... foi entrando
para o conselho animal...

("não tarde que ele chegou!")
Abriu a boca e falou -
deu a sentença final:
"- não tenham medo da força!
Se o leão o alheio retém
- luta ao Mal! Vitória ao Bem!
tire-se ao leão - dê-se à corça."

Mas quando lá fora
o vento irado nas frestas chora
e ramos xuxualha de altas mulembas
e portas bambas batem em massembas
os meninos se apertam de olhos abertos:

- Eué

- É cazumbi...

E a gente grande -
bem perto dali
feijão descascando para o quitende -
a gente grande com gosto ri...

Com gosto ri, porque ela diz
que o cazumbi males só faz
a quem não tem amor, aos mais
seres busca, em negra noite,
essa outra voz de cazumbi
essa outra voz - Felicidade...

*
ilustração de Joba tridente.2012

Viriato Francisco Clemente da Cruz (1928 - 1973) nasceu em Kikuvo, Porto Amboim, e estudou em Luanda. Viriato, cuja obra tem forte apelo regionalista, foi um dos grandes impulsionadores da poesia angolana, nas décadas de 1940/1950. Autor engajado e um dos líderes da luta pela libertação de Angola, a poesia de Viriato da Cruz está dispersa em várias publicações e, acredita-se completa, em uma antologia de 1961: Poemas.

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