quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

REVELL: Questões de Narratividade

A REVELL – Revista de Estudos Literários, da Universidade Estadual de Matogrosso do Sul, já está disponível na web, para leitura online e ou download, com edição totalmente dedicada às Questões de Narratividade.  Confira, na Apresentação, os artigos em pauta e boa leitura! 


QUESTÕES  DE  NARRATIVIDADE


a p r e s e n t a ç ã o
Ravel Giordano de Lima Faria Paz

A edição número 11 da Revell reúne artigos que têm em seu cerne questões ligadas às práticas e teorias narrativas. Por si só, o elevado número de submissões – quase o dobro dos artigos selecionados – atesta essa dupla pujança: das produções narrativas e das reflexões em torno delas, assim como de seus aspectos, desdobramentos, motivações, relações... enfim, de tudo o que, conforme o título do dossiê, concerne aos âmbito geral da narratividade, entendida como a dimensão mais ampla e genérica, a “essência” ou fundamento básico das práticas narrativas, mas também o elemento que permite identificar essas práticas na infinita gama de fenômenos da realidade humana.

E a Revell tem a satisfação de dar a público um dossiê que compõe um significativo – ainda que inevitavelmente fragmentário – painel desse campo tão denso quanto difuso, mas, em todo caso, de peso decisivo no quadro dos estudos literários contemporâneos. O predomínio de textos crítico-analíticos não obsta a amplitude das perspectivas e questões teóricas que emergem no conjunto, e muito menos a relevância de cada uma delas.

Sendo essa duplicidade ou imbricação crítico-teórica uma característica compartilhada por quase todos os textos do dossiê, optamos por organizá-lo segundo critérios basicamente temáticos.

Num primeiro bloco, reunimos os artigos centrados em textos especificamente literários, dispondo-os mais ou menos segundo sua proximidade ou distância temporal a nós. Assim, os artigos que abrem o dossiê e esse primeiro bloco versam sobre obras de autores ainda vivos ou recém-falecidos, a partir de questões e instrumentais teóricos pertinentes.

O artigo que abre o dossiê, “Narrador, focalização e tempo: desvendando sentidos em A maçã envenenada, de Michel Laub”, de Leila Aparecida Cardoso de Freitas e Rosana Cristina Zanelatto Santos, é um dos que melhores exemplificam isso, como aliás se explicita desde o título: de fato, é explorando a manipulação consciente dos recursos narracionais no romance estudado que, retomando a conhecida problemática benjaminiana, as autoras do artigo afirmam a permanência da arte de narrar no século XXI, numa análise onde a discussão freudiana acerca do trauma possui papel fundamental.

Também em “A voz e o modo em O último conhaque, de Carlos Herculano Lopes”, trabalho assinado por Lydyane de Almeida Menzotti e Ricardo Magalhães Bulhões, a leitura proposta se fundamenta em uma ampla explanação sobre a configuração inusitada de elementos como o tempo e o espaço no romance moderno, a partir da qual os autores buscam demonstrar a importância da memória e da busca identitária, em seu entrelaçamento com esses elementos, na configuração semântico-estrutural da obra em questão.

Versando igualmente sobre um autor brasileiro contemporâneo, “Os amores de Romeu: o anti-Édipo em Romeu na estrada, de Rinaldo de Fernandes” identifica na obra estudada uma versão subversiva do mito de Édipo, num empenho interpretativo onde novamente o espaço (assim como o trauma, embora essa palavra não seja usada) ocupa lugar fundamental, mas agora pelo viés da desterritorialização deleuzeguattariana, o que culmina numa discussão – tão ousada quanto oportuna – acerca das circunscrições geográficas das próprias classificações e valorações críticas, de par com a afirmação do alto valor do romance em análise.

O quarto artigo, “As perspectivas do leitor em ‘A imagem do segador’”, de Larissa de Cássia Antunes Ribeiro, dedica-se ao estudo de um conto de Stephen King. Indiferente à pecha de autor comercial do escritor norte-americano, o trabalho busca identificar como os mecanismos de configuração da diegese em consonância com a tradição do gênero gótico, assim como o jogo entre a perspectiva do protagonista e a do leitor – sendo este o alvo central da análise –, ajudam a produzir os efeitos estéticos almejados.

Segue-se um pequeno conjunto de artigos dedicados a obras de autores portugueses contemporâneos. O primeiro deles, “Rosa e o ‘baralho viciado’ do gênero biográfico em Mário Cláudio”, de Julia Pinheiro Gomes, discute a complexa interrelação entre biografia e ficção no romance nomeado, terceiro volume de uma trilogia. Partindo de uma proposição de Roland Barthes, busca-se identificar nesse romance contemporâneo uma experiência radical no âmbito de tal intersecção.

Os dois artigos seguintes são dedicados a obras do escritor português José Saramago, ambas, coincidentemente, releituras saramaguianas de episódios bíblicos.

O primeiro, “O narrador errante e paródico em Caim, de José Saramago”, demonstra a imbricação da instância narrativa com os demais planos da narrativa em questão, num procedimento que não apenas inverte como desnuda a autoridade constituída na narração bíblica.

Já o segundo, “O José de Saramago: a Bíblia revisitada”, de Simone Achre, centra-se na categoria de personagem, resgatando a importância de uma delas – naturalmente a nomeada no título, geralmente tida como secundária – na configuração semântica de O evangelho segundo Jesus Cristo.

Abrindo uma nova sequência de trabalhos dedicados a autores brasileiros, o artigo “Romance e memória de arquivo: a figuração plural da singularidade do Brasil no Romance d’A Pedra do Reino”, de Renailda Ferreira Cazumbá e Edvania Gomes da Silva, parte do interessante conceito de “ficção de arquivo”, ligado à interpenetração de história, cultura e memória, para identificar procedimentos específicos no romance de Suassuna, contextualizado no âmbito de problemas herdados da literatura e da sociedade brasileiras.

“‘O circo’: uma análise do poema narrativo de João Cabral de Melo Neto”, de Samuel Carlos Melo, parte de uma ampla discussão da tradição do poema narrativo para situar nela a obra em questão, expondo sua hibridização de elementos líricos e prosaicamente históricos, além da busca, notória no autor, das soluções métricas adequadas às intenções significantes, aliada às discretas mas decisivas experiências formais cabralinas.

“‘Mosaicos sertanejos’: gênero e narrativa”, de Nathalie Elias da Silva Cavalcante e Danglei de Castro Pereira, recupera a obra esquecida do paulistano Othoniel Motta para demonstrar a complexidade formal e de construção das personagens no texto estudado, apontando uma dialogicidade rara no gênero e no momento a que ele pertence, a saber, a literatura regionalista do pré-modernismo.

No artigo de cunho mais especificamente teórico do dossiê – na verdade um ensaio que emula a forma livre de Walter Benjamin em “O narrador” –, Renan Salmistraro discute “A cultura do trauma no romance”, ou, mais especificamente, os impasses acerca das questões do choque e da experiência no próprio Benjamin, verificáveis na contraposição de suas formulações acerca do romance moderno e da lírica baudelaireana. Abordando de frente essa questão espinhosa, o trabalho vê na recusa benjaminiana dos processos de intelectualização e de abertura para a experiência interior do romance moderno uma explicação para a não-percepção, pelo estudioso alemão, de André Gide – em Os moedeiros falsos, obra, portanto, de relevo no ensaio –enquanto romancista que incorpora de forma válida as experiências traumáticas da modernidade.

A literatura portuguesa volta a marcar presença em outro ensaio de fôlego: em “O riso da prosa: o narrador dramatizado de Thomé Pinheiro da Veiga e seus fastos geniais”, Paulo Ricardo Kralik Angelini se vale de liberdades formais para traçar um rico painel das experimentações no romance português contemporâneo, para finalmente encontrar e analisar um exemplo de narrador dramatizado consciente de si próprio (segundo a expressão de Wayne Booth) bem anterior ao Garrett de Viagens na minha terra: naturalmente o nomeado no título, em cujo romance Fastigínia (ou Fastigímia), dos primórdios do século XVII, novamente biografia e ficção se fundem de formas inusitadas.

Recuando para meados do século XIX – e de volta ao Brasil, mas ainda com um pé na Europa –, Eugenio Vinci de Moraes busca identificar, conforme seu título explicita, “A presença da Divina Comédia em Helena de Machado de Assis”. A partir de uma citação aparentemente fortuita, o artigo sem empenha em demonstrar como a obra dantesca pode ser identificada como um dos modelos fundamentais, sempre trabalhados pelo gênio machadiano, na construção da intriga e dos conflitos entre as personagens do romance em questão.

Em outro salto temporal e geográfico, esse primeiro bloco se encerra com o artigo “O Inferno em Eneida: mito e poesia”, que, conforme o título, averigua a interrelação de elementos míticos e poéticos na epopeia de Virgílio, numa discussão que propõe, a partir de Schelling, o mito como dado fundamental na constituição da arte.

O segundo bloco, dedicado aos artigos que propõem enfoques intersemióticos ou tratam de objetos extraliterários, abre com o trabalho “O cômico e o horrível: Re-animator”. Partindo de uma análise comparativa do filme de Stuart Gordon nomeado no título com sua matriz lovecraftiana, assim como das teorizações do próprio H. P. Lovecraft sobre a literatura de Horror, o artigo argumenta pela melhor configuração formal da obra fílmica, graças, em parte, ao uso inteligente de elementos cômicos, cuja função específica nela se busca determinar.

Mais especificamente comparativo, o artigo seguinte, “Questões de narratividade em Julio Cortázar e Michelangelo Antonioni”, de Mayara Regina Pereira Dau Araujo, busca identificar os elementos de construção simbólica e desautomatização da percepção específicos, concernentes aos suportes em questão, do conto “As babas do diabo”, de Cortázar, e do filme de Antonioni que o tem como ponto de partida, Blow up, depois daquele beijo.

Segue-se o trabalho “Preceitos aristotélicos na narrativa do cinema – em análise o filme Match Point, de Woody Allen”, de Cintia Sacramento Aquino, no qual a Poética de Aristóteles cumpre a dupla função, atípica mas interessante, de base analítica e objeto comparativo para estudo do filme referido, e no qual se identificam as fidelidades e infidelidades em relação às formulações do estagirita.

No penúltimo texto, “Crime na calle relator: O estatuto do herói e do narrador do poema narrativo moderno em João Cabral de Melo Neto”, Wilker Quadros dos Santos versa sobre os heróis no poema narrativo de João Cabral.

Finalmente, encerra o bloco e o dossiê o artigo “Funções da ciência, ficção científica e mitos do passado e do futuro”, de Guilherme Profeta, onde o que está em questão são menos os problemas concernentes ao gênero (ou subgênero) literário nomeado no título do que as referentes ao próprio pensamento científico, no qual novamente se avalia a presença de demandas míticas e mesmo místicas. Justamente em sua atipicidade, no entanto, o trabalho atesta a importância das discussões empreendidas no âmbito dos estudos literários para a construção do conhecimento no contexto mais amplo das ciências humanas.

Ao dar a público o número 11 da Revell, seus editores têm a convicção de apresentar uma amostra da riqueza e das potencialidades dos estudos narrativos. É perceptível, nesse conjunto, a dominância ou recorrência de certos temas e tendências, como as questões do choque e do trauma, a pujança dos estudos de literatura portuguesa (e dela mesma, é claro) e também do regionalismo brasileiro (incluindo aí polêmica encetada no terceiro ensaio), mas cabe ao leitor extrair seus próprios aproveitamentos e conclusões de cada texto e do conjunto.

Devido ao grande número de artigos selecionado para o Dossiê Questões de Narratividade, nesta excepcionalmente edição, não publicaremos as sessões de temática livre, resenha e criação literária.


Ravel Giordano de Lima Faria Paz, editor da REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS, é professor da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul e autor do livro Serenidade e Fúria: o Sublime Assismachadiano, lançado pela Editora Nankin. Mestre em Teoria e História da Literatura pela Universidade Estadual de Campinas, na qual estudou os dois primeiros romances de Chico Buarque, Estorvo e Benjamim, doutor em Letras Clássicas e Vernáculas (Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) pela Universidade de São Paulo, onde realizou uma aproximação contrastiva entre Machado de Assis e Almeida Garrett, e pós-doutor pela Unicamp, onde pesquisou afinidades, diferenças e conflitos ideológicos das proposições de Bakhtin e Derrida relacionadas à teoria da narrativa. Justamente com o professor Fabio Akcelrud Durão, da Unicamp, organizou o livro A Indústria Radical - Leituras de Cinema como Arte-Inquietação, lançado recentemente pela Editora Nankin, que reúne 15 artigos sobre a indústria cinematográfica, abordando desde o cinema clássico, com textos sobre Cidadão Ka­ne e Terra em Transe, até a Saga Star Wars e o cult alternativo Pink Flamingos. Nesta en­trevista Ravel fala sobre cinema, literatura, a resistência da crítica literária quanto a Chico Buarque e as desleituras de Harold Bloom.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...