A REVELL – Revista de
Estudos Literários, da Universidade Estadual de Matogrosso do Sul, já
está disponível na web, para leitura online e ou download, com edição totalmente
dedicada às Questões de Narratividade. Confira, na Apresentação, os artigos em pauta e boa leitura!
A edição número 11 da Revell reúne artigos que têm em seu cerne questões ligadas às
práticas e teorias narrativas. Por si só, o elevado número de submissões – quase
o dobro dos artigos selecionados – atesta essa dupla pujança: das produções
narrativas e das reflexões em torno delas, assim como de seus aspectos,
desdobramentos, motivações, relações... enfim, de tudo o que, conforme o título
do dossiê, concerne aos âmbito geral da narratividade, entendida como a
dimensão mais ampla e genérica, a “essência” ou fundamento básico das práticas
narrativas, mas também o elemento que permite identificar essas práticas na
infinita gama de fenômenos da realidade humana.
E a Revell
tem a satisfação de dar a público um dossiê que compõe um significativo – ainda
que inevitavelmente fragmentário – painel desse campo tão denso quanto difuso,
mas, em todo caso, de peso decisivo no quadro dos estudos literários
contemporâneos. O predomínio de textos crítico-analíticos não obsta a amplitude
das perspectivas e questões teóricas que emergem no conjunto, e muito menos a
relevância de cada uma delas.
Sendo essa duplicidade ou imbricação
crítico-teórica uma característica compartilhada por quase todos os textos do
dossiê, optamos por organizá-lo segundo critérios basicamente temáticos.
Num primeiro bloco, reunimos os artigos
centrados em textos especificamente literários, dispondo-os mais ou menos
segundo sua proximidade ou distância temporal a nós. Assim, os artigos que
abrem o dossiê e esse primeiro bloco versam sobre obras de autores ainda vivos
ou recém-falecidos, a partir de questões e instrumentais teóricos pertinentes.
O artigo que abre o dossiê, “Narrador, focalização e tempo: desvendando
sentidos em A maçã envenenada, de Michel Laub”, de Leila Aparecida Cardoso
de Freitas e Rosana Cristina Zanelatto Santos, é um dos que melhores
exemplificam isso, como aliás se explicita desde o título: de fato, é
explorando a manipulação consciente dos recursos narracionais no romance
estudado que, retomando a conhecida problemática benjaminiana, as autoras do
artigo afirmam a permanência da arte de narrar no século XXI, numa análise onde
a discussão freudiana acerca do trauma possui papel fundamental.
Também em “A
voz e o modo em O último conhaque, de Carlos Herculano Lopes”, trabalho
assinado por Lydyane de Almeida Menzotti e Ricardo Magalhães Bulhões, a leitura
proposta se fundamenta em uma ampla explanação sobre a configuração inusitada
de elementos como o tempo e o espaço no romance moderno, a partir da qual os
autores buscam demonstrar a importância da memória e da busca identitária, em
seu entrelaçamento com esses elementos, na configuração semântico-estrutural da
obra em questão.
Versando igualmente sobre um autor brasileiro
contemporâneo, “Os amores de Romeu: o
anti-Édipo em Romeu na estrada, de Rinaldo de Fernandes” identifica na obra
estudada uma versão subversiva do mito de Édipo, num empenho interpretativo
onde novamente o espaço (assim como o trauma, embora essa palavra não seja
usada) ocupa lugar fundamental, mas agora pelo viés da desterritorialização
deleuzeguattariana, o que culmina numa discussão – tão ousada quanto oportuna –
acerca das circunscrições geográficas das próprias classificações e valorações
críticas, de par com a afirmação do alto valor do romance em análise.
O quarto artigo, “As perspectivas do leitor em ‘A imagem do segador’”, de Larissa de
Cássia Antunes Ribeiro, dedica-se ao estudo de um conto de Stephen King.
Indiferente à pecha de autor comercial do escritor norte-americano, o trabalho
busca identificar como os mecanismos de configuração da diegese em consonância
com a tradição do gênero gótico, assim como o jogo entre a perspectiva do
protagonista e a do leitor – sendo este o alvo central da análise –, ajudam a
produzir os efeitos estéticos almejados.
Segue-se um pequeno conjunto de artigos
dedicados a obras de autores portugueses contemporâneos. O primeiro deles, “Rosa e o ‘baralho viciado’ do gênero
biográfico em Mário Cláudio”, de Julia Pinheiro Gomes, discute a complexa
interrelação entre biografia e ficção no romance nomeado, terceiro volume de
uma trilogia. Partindo de uma proposição de Roland Barthes, busca-se identificar
nesse romance contemporâneo uma experiência radical no âmbito de tal
intersecção.
Os dois artigos seguintes são dedicados a
obras do escritor português José Saramago, ambas, coincidentemente, releituras
saramaguianas de episódios bíblicos.
O primeiro, “O narrador errante e paródico em Caim, de José Saramago”,
demonstra a imbricação da instância narrativa com os demais planos da narrativa
em questão, num procedimento que não apenas inverte como desnuda a autoridade
constituída na narração bíblica.
Já o segundo, “O José de Saramago: a Bíblia revisitada”, de Simone Achre,
centra-se na categoria de personagem, resgatando a importância de uma delas –
naturalmente a nomeada no título, geralmente tida como secundária – na
configuração semântica de O evangelho segundo
Jesus Cristo.
Abrindo uma nova sequência de trabalhos
dedicados a autores brasileiros, o artigo “Romance
e memória de arquivo: a figuração plural da singularidade do Brasil no Romance
d’A Pedra do Reino”, de Renailda Ferreira Cazumbá e Edvania Gomes da Silva,
parte do interessante conceito de “ficção de arquivo”, ligado à interpenetração
de história, cultura e memória, para identificar procedimentos específicos no
romance de Suassuna, contextualizado no âmbito de problemas herdados da
literatura e da sociedade brasileiras.
“‘O circo’: uma análise do poema narrativo de João Cabral de Melo
Neto”, de Samuel Carlos Melo, parte de uma ampla
discussão da tradição do poema narrativo para situar nela a obra em questão,
expondo sua hibridização de elementos líricos e prosaicamente históricos, além
da busca, notória no autor, das soluções métricas adequadas às intenções
significantes, aliada às discretas mas decisivas experiências formais
cabralinas.
“‘Mosaicos sertanejos’: gênero e narrativa”, de Nathalie Elias da Silva Cavalcante e Danglei de Castro
Pereira, recupera a obra esquecida do paulistano Othoniel Motta para demonstrar
a complexidade formal e de construção das personagens no texto estudado,
apontando uma dialogicidade rara no gênero e no momento a que ele pertence, a
saber, a literatura regionalista do pré-modernismo.
No artigo de cunho mais especificamente teórico
do dossiê – na verdade um ensaio que emula a forma livre de Walter Benjamin em “O narrador” –, Renan Salmistraro discute “A
cultura do trauma no romance”, ou, mais especificamente, os impasses acerca
das questões do choque e da experiência no próprio Benjamin, verificáveis na
contraposição de suas formulações acerca do romance moderno e da lírica
baudelaireana. Abordando de frente essa questão espinhosa, o trabalho vê na
recusa benjaminiana dos processos de intelectualização e de abertura para a
experiência interior do romance moderno uma explicação para a não-percepção,
pelo estudioso alemão, de André Gide – em Os
moedeiros falsos, obra, portanto, de relevo no ensaio –enquanto romancista
que incorpora de forma válida as experiências traumáticas da modernidade.
A literatura portuguesa volta a marcar
presença em outro ensaio de fôlego: em “O
riso da prosa: o narrador dramatizado de Thomé Pinheiro da Veiga e seus fastos
geniais”, Paulo Ricardo Kralik Angelini se vale de liberdades formais para
traçar um rico painel das experimentações no romance português contemporâneo,
para finalmente encontrar e analisar um exemplo de narrador dramatizado
consciente de si próprio (segundo a expressão de Wayne Booth) bem anterior ao
Garrett de Viagens na minha terra: naturalmente o nomeado no título, em cujo
romance Fastigínia (ou Fastigímia), dos primórdios do século
XVII, novamente biografia e ficção se fundem de formas inusitadas.
Recuando para meados do século XIX – e de
volta ao Brasil, mas ainda com um pé na Europa –, Eugenio Vinci de Moraes busca
identificar, conforme seu título explicita, “A
presença da Divina Comédia em Helena de Machado de Assis”. A partir de uma
citação aparentemente fortuita, o artigo sem empenha em demonstrar como a obra
dantesca pode ser identificada como um dos modelos fundamentais, sempre
trabalhados pelo gênio machadiano, na construção da intriga e dos conflitos
entre as personagens do romance em questão.
Em outro salto temporal e geográfico, esse
primeiro bloco se encerra com o artigo “O
Inferno em Eneida: mito e poesia”, que, conforme o título, averigua a
interrelação de elementos míticos e poéticos na epopeia de Virgílio, numa
discussão que propõe, a partir de Schelling, o mito como dado fundamental na
constituição da arte.
O segundo bloco, dedicado aos artigos que
propõem enfoques intersemióticos ou tratam de objetos extraliterários, abre com
o trabalho “O cômico e o horrível: Re-animator”.
Partindo de uma análise comparativa do filme de Stuart Gordon nomeado no título
com sua matriz lovecraftiana, assim como das teorizações do próprio H. P.
Lovecraft sobre a literatura de Horror, o artigo argumenta pela melhor
configuração formal da obra fílmica, graças, em parte, ao uso inteligente de
elementos cômicos, cuja função específica nela se busca determinar.
Mais especificamente comparativo, o artigo
seguinte, “Questões de narratividade em
Julio Cortázar e Michelangelo Antonioni”, de Mayara Regina Pereira Dau
Araujo, busca identificar os elementos de construção simbólica e
desautomatização da percepção específicos, concernentes aos suportes em
questão, do conto “As babas do diabo”,
de Cortázar, e do filme de Antonioni que o tem como ponto de partida, Blow up, depois daquele beijo.
Segue-se o trabalho “Preceitos aristotélicos na narrativa do cinema – em análise o filme Match
Point, de Woody Allen”, de Cintia Sacramento Aquino, no qual a Poética de
Aristóteles cumpre a dupla função, atípica mas interessante, de base analítica
e objeto comparativo para estudo do filme referido, e no qual se identificam as
fidelidades e infidelidades em relação às formulações do estagirita.
No penúltimo texto, “Crime na calle relator: O estatuto do herói e do narrador do poema
narrativo moderno em João Cabral de Melo Neto”, Wilker Quadros
dos Santos versa sobre os heróis no poema
narrativo de João Cabral.
Finalmente, encerra o bloco e o dossiê o
artigo “Funções da ciência, ficção
científica e mitos do passado e do futuro”, de Guilherme Profeta, onde o
que está em questão são menos os problemas concernentes ao gênero (ou
subgênero) literário nomeado no título do que as referentes ao próprio
pensamento científico, no qual novamente se avalia a presença de demandas
míticas e mesmo místicas. Justamente em sua atipicidade, no entanto, o trabalho
atesta a importância das discussões empreendidas no âmbito dos estudos
literários para a construção do conhecimento no contexto mais amplo das
ciências humanas.
Ao dar a público o número 11 da Revell, seus editores têm a convicção
de apresentar uma amostra da riqueza e das potencialidades dos estudos
narrativos. É perceptível, nesse conjunto, a dominância ou recorrência de
certos temas e tendências, como as questões do choque e do trauma, a pujança
dos estudos de literatura portuguesa (e dela mesma, é claro) e também do
regionalismo brasileiro (incluindo aí polêmica encetada no terceiro ensaio),
mas cabe ao leitor extrair seus próprios aproveitamentos e conclusões de cada
texto e do conjunto.
Devido ao grande número de artigos
selecionado para o Dossiê Questões de
Narratividade, nesta excepcionalmente edição, não publicaremos as sessões
de temática livre, resenha e criação literária.
Ravel Giordano de Lima Faria Paz, editor da REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS, é professor da Universidade
Estadual do Mato Grosso do Sul e autor do livro Serenidade e Fúria: o Sublime Assismachadiano, lançado pela Editora
Nankin. Mestre em Teoria e História da Literatura pela Universidade Estadual de
Campinas, na qual estudou os dois primeiros romances de Chico Buarque, Estorvo e Benjamim, doutor em Letras Clássicas e Vernáculas (Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) pela Universidade de São Paulo,
onde realizou uma aproximação contrastiva entre Machado de Assis e Almeida
Garrett, e pós-doutor pela Unicamp, onde pesquisou afinidades, diferenças e
conflitos ideológicos das proposições de Bakhtin e Derrida relacionadas à
teoria da narrativa. Justamente com o professor Fabio Akcelrud Durão, da
Unicamp, organizou o livro A Indústria
Radical - Leituras de Cinema como Arte-Inquietação, lançado recentemente
pela Editora Nankin, que reúne 15 artigos sobre a indústria cinematográfica,
abordando desde o cinema clássico, com textos sobre Cidadão Kane e Terra em
Transe, até a Saga Star Wars e o
cult alternativo Pink Flamingos.
Nesta entrevista Ravel fala sobre cinema, literatura, a resistência da crítica
literária quanto a Chico Buarque e as desleituras de Harold Bloom.
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