terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Jean de La Fontaine: O Leão e o Mosquito

François Chauveau (1613-1676)

A onda de terror propagada pelo mosquito Aedes Aegypti, que apareceu transmitindo a Febre Amarela, seguiu com a Dengue, avançou para Chikungunya e, no momento, está investindo na Zika..., me fez lembrar uma fascinante fábula de Jean de La Fontaine (1621-1695): O Leão e o Mosquito.

Enquanto cientistas de todo o mundo buscam uma forma de acabar com o maligno pernilongo rajado, achei que seria interessante provocar os seres humanos leitores com a reflexiva e inquietante a fábula O Leão e o Mosquito.

Para tanto, aproveitando que a publicação anterior foi Questões de Narratividade, selecionei, além do texto original em francês, as versões portuguesas de Filinto Elisio (1734-1819), Curvo Semedo (1766-1838) e José Ignácio de Araújo (1827-1907). De bônus, O Velho e a Mosca, fábula de Esopo traduzida do grego por Manuel Mendes da Vidigueira (sec.16-sec.17) e publicada em 1603.

Que esta postagem sirva como metáfora, ou mesmo meta fora do contexto, se preferir, na caça ao mosquitinho Aedes. Dei uma leve atualizada na ortografia.



Jean-Michel le Jeune Moreau (1741-1814)

          Le Lion et le Moucheron
           Jean de La Fontaine

« Va-t’en, chétif insecte, excrément de la terre ! »
C’est en ces mots que le lion
Parlait un jour au moucheron.                                                                                       
L’autre lui déclara la guerre.
« Penses-tu, lui dit-il, que ton titre de roi                
Me fasse peur, ni me soucie ?
Un bœuf est plus puissant que toi ;
Je le mène à ma fantaisie. »
À peine il achevait ces mots
Que lui-même il sonna la charge,          
Fut le trompette et le héros.
Dans l’abord il se met au large ;
Puis prend son temps, fond sur le cou                    
Du lion qu’il rend presque fou.
Le quadrupède écume, et son œil étincelle ;  
Il rugit, on se cache, on tremble à l’environ ;                   
Et cette alarme universelle
Est l’ouvrage d’un moucheron.
Un avorton de mouche en cent lieux le harcèle,               
Tantôt pique l’échine, et tantôt le museau,             
Tantôt entre au fond du naseau.                              
La rage alors se trouve à son faîte montée.                                
L’invisible ennemi triomphe, et rit de voir
Qu’il n’est griffe ni dent en la bête irritée,
Qui de la mettre en sang ne fasse son devoir.
Le malheureux lion se déchire lui-même,
Fait résonner sa queue à l’entour de ses flancs,
Bat l’air qui n’en peut mais; et sa fureur extrême            
Le fatigue, l’abat : le voilà sur les dents.                            
L’insecte du combat se retire avec gloire:               
Comme il sonna la charge, il sonne la victoire;
Va partout l’annoncer ; et rencontre en chemin
L’embuscade d’une araignée:                                   
Il y rencontre aussi sa fin.

Quelle chose par là nous peut être enseignée ?       
J’en vois deux, dont l’une est qu’entre nos ennemis,
Les plus à craindre sont souvent les plus petits ;
L’autre, qu’aux grands périls tel a pu se soustraire,         
Qui périt pour la moindre affaire.



Auguste Vimar (1851-1916)

         O Leão e o Mosquito
          Jean de La Fontaine
         tradução: Filinto Elísio¹

"Vai-te, excremento do Orbe, vil inseto!"
(Ao mosquito dizia o leão um dia)
Quando, clamando guerra,
Respondia o mosquito:
— Cuidas que tenho susto, ou faço caso,
De que rei te intitules? Mais potente
É um rei, que tu não és, e eu dou-lhe o amanho,
Que me dá na vontade. — Assim falando.
Trombeta de si mesmo, e seu herói,
Toca a investir, e pondo-se de largo,
Lança as linhas, e atira-se ao pescoço
Do leão, que enlouquece,
Que escuma, e que nos olhos relampeja:
Ruge horrendo, e pavor em roda infunde
Tão rijo, que estremece, e que se esconde
Toda a gente. — E era obra dum mosquito
Tão insólito susto:
Atormenta-o essa esquírola de mosca,
Que ora helfas lhe pica, ora o costado,
Ora lhe entra nas ventas. —
Então lhe sobe ao galarim a sanha,
Então triunfa, e ri do seu contrário.
O invencível, de ver no irado busto,
Que dentes, garras, em lavá-lo em sangue
Seu dever desempenham.
O costado do leão se esfola, e rasga,
Dá num, dá noutro quadril com a cauda estalos.
Fere a mais não poder, com o açoite os ares. —
Desse extremo furor, que o cansa, e quebra.
Fica prostrado e torvo. —
Eis que o mosquito ali blasona ovante;
Qual a investir tocou, vitórias toca,
Pelo Orbe as assoalha,
Pavoneando gira. — Mas no giro
Certa aranha, que estava de emboscada,
De sobressalto o colhe,
E lhe chupa a ufania.

Doutrinas serviçais há nesta fábula.
Eis uma: Que o que mais entre inimigos
Devemos de temer, são muitas vezes
Os mais pequenos deles.
Outra é: Que alguém escapa aos perigos,
Que em menor lance acaba.



Paul Gustave Doré (1832-1883)

O Leão e o Mosquito
Jean de La Fontaine
tradução: Curvo Semedo²

Disse um leão por desprezo
A certo mosquito ardente:
Vai-te, escória vil da Terra,
— Vai-te, nonada vivente.
Jura-lhe guerra o mosquito,
Do que ouvira um tanto azedo,
E diz-lhe: — Acaso tu pensas,
Que eu de leões tenho medo?!
Porque és das feras monarca
Nada me dás que temer,
Maior do que és é um touro,
E eu faço-o terra comer. —
Disse o trombeteiro herói;
E, tomando um ar agreste,
A trombeta horrenda toca
E ao fero inimigo investe;
Entre as jubas no pescoço
Lhe ferra o duro ferrão;
Como louco salta, e escuma,
Ruge e morde-se o leão.
Amedronta as outras feras
O seu furor inaudito,
Atroa os céus, sendo tudo
Obra de um ténue mosquito.
O aborto d’uma vil mosca
Por mil partes o molesta,
Punge-lhe o peito, o focinho,
Os olhos, o lombo, a testa;
Este invisível contrário
Triunfa do seu furor,
Garras, dentes, raiva, tudo
Lhe inutiliza o traidor;
Com a cauda açoita as ancas,
Sacode a increspada juba,
Até que a extrema fadiga
Vencido em terra o derruba.
Do combate se retira
O inseto cheio de glória,
E é a trombeta do ataque
A que apregoa a vitória.
Porém, quando mais vaidoso
Seu valor e esforço gaba,
Topa uma teia de aranha
Que a vida e glória lhe acaba.
Não desprezes por pequeno
O teu contrário também;
Porque dele as mais das vezes
O maior mal te provém.
Nem tão pouco em bens confies
Desta vida transitória;
Que uma só teia de aranha
Murchar pode a tua glória.

  

Horace Vernet (1789-1863)

          O leão e o Mosquito
           Jean de La Fontaine
           tradução: José Ignácio de Araújo³

«Vai-te, inseto mesquinho e vil na terra!»
Depois de assim ter dito
O leão ao mosquito,
Este lhe declarou cruenta guerra:
«Pensas tu que por seres rei dos bichos
Tua audácia tolero?
Mais força tem o boi e, quando quero,
Sujeito-o a meus caprichos!»
Diz, e toca a avançar;
Foi o herói e o trombeta na batalha.
Zumbe em torno ao leão, tanto o atrapalha,
Que o faz desesperar.
Ao longe põe-se um pouco;
Depois, salta-lhe em cima do cachaço
E torna-o quase louco.
A fera com o rugido atroa o espaço.
De ouvir o horrendo grito
Seus ecos prolongar atroadores,
Tremem os animais dos arredores;
Tudo obra dum mosquito!
O inseto pequenino, ousado e pronto,
Ora ao dorso lhe salta,
Ora as ventas lhe assalta.
A raiva no leão sobe de ponto:
Com a cauda açoita os flancos,
Com o olhar ameaça
E, rugindo duríssimos arrancos,
Com as garras a si se despedaça,
Até que, de fatigado,
Cai, fica estatelado!
O inseto do combate sai com glória,
A mais alta e completa,
E na mesma trombeta
Em que a avançar tocou, cantou vitória.
Mas, proclamando ao mundo esta façanha
Não vista e desmedida,
Na teia duma aranha
Cai, fica embaraçado e perde a vida!

A fábula vos diz que os inimigos
Nunca deveis considerar somenos;
E que pode o que escapa a grandes perigos
Não poder escapar aos mais pequenos.



Joba Tridente - 2016

Esopo: O Velho e a Mosca
tradução: Manuel Mendes da Vidigueira

Repousava à soalheira um Velho calvo, com a cabeça descoberta, e uma Mosca não fazia senão picar-lhe na calva. Acudia logo o Velho com a mão, e como ela fugisse mui depressa, dava em si grandes palmadas, de que a Mosca gostava e se ria. Disse o Velho: - Ride-vos, embora, de quantas vezes eu der em mim; que isso não me mata, mas se uma só vez vos acerta, ficareis morta, e pagareis o novo e o velho.


autores
Esopo, o grande fabulista grego, ainda hoje é uma grande incógnita. Não se sabe quando e onde (Samos? Sardes? Atenas?) nasceu, mas acredita-se que teria sido morto em Delfos em 620 a.C. Pelo que se conta, o mestre não teria palpos na língua e ancorado pelas suas fábulas atingia os grandes e os pequenos com seus julgamentos. Escravo, teria sido liberto por Jadmo de Samos e saiu pelo mundo: Egito, Babilônia, Ásia Menor. Apesar de deixar nada escrito, Esopo seria autor de, no mínimo, umas 400 fábulas, recontadas até hoje. Dos muitos autores que as recolheram o mais popular é o francês Jean de La Fontaine.

Jean de La Fontaine (1621 - 1695), escritor e fabulista francês: “Sirvo-me dos animais para instruir os homens”. Autor de: Fábulas (1668 a 1694); O Eunuco (1654); Adonis (1668); La Captivité de Saint Malc (1673); Le Quinquina (1682); Os Amores de Psiquê e Cupido (1669); Contos e Novelas em Verso (1664).


tradutores
1. Francisco Manuel do Nascimento ou Filinto Elísio (Lisboa, 1734 - Paris, 1819) foi um sacerdote, escritor e tradutor português, um dos grandes nomes do Neoclassicismo. Fugindo da Inquisição, se refugiou em Paris, no ano de 1778, onde seus poemas foram publicados em 11 volumes, entre 1817 e 1819. Após a sua morte, entre 1836 e 1840, a sua obra completa, em 22 volumes, foi publicada em Portugal.  Entre suas traduções constam: Os Mártires, de Chateaubriand; As Fábulas, de La Fontaine; Púnica, de Sílio; Farsália, de Lucano. Link de 22 volumes da obra completa de Filinto Elísio, publicadas entre 1836 e 1840, em Portugal, disponibilizadas em edição digital, para leitura online e ou download (PDF), pela Biblioteca Nacional de Portugal. As Fábulas estão nos Tomos XII e XIII. Há também uma versão digital, só com poemas, das Obras Completas de Filinto Elísio, no site Domínio Público. Biografia de Filinto Elísio. Fontes: web.

2. Belchior Manuel Curvo Smedo Torres de Sequeira  (Montemor-o-Novo, 1766 – Lisboa, 1838) foi escritor, tradutor e sócio fundador da Academia Literária Nova Arcádia (1790-1794). Seus poemas estão reunidos nos quatro volumes de Composições Poéticas (1803-1835). Nas traduções o destaque é a edição de Fábulas, de Jean de La Fontaine (1820).

3. José Ignácio de Araújo (1827-1907). Não encontrei informação biográfica alguma sobre o autor, além de página de livros no Google Play, livro de Poesias (1862), online, e uma lista de livros de sua autoria que me fazem pensar que, além de escritor e tradutor, também tenha sido dramaturgo.

4. Manuel Mendes da Vidigueira (sec.16-sec.17). Sabe-se quase nada sobre a vida deste professor e tradutor português, que viveu entre os séculos 16 e 17 e foi pioneiro na tradução de Esopo, com a publicação de Vida e Fabulas do Insigne Fabulador Grego Esopo. De nouo juntas, & traduzidas com breues applicaçoens moraes a cada fabula. Por Manuel Mendes da Vidigueyra, no ano de 1603, em Évora. Fonte Biográfica: História Crítica da Fábula na Literatura Portuguesa - Ana Paiva Morais. Sugiro visitar o excelente site Fábula na Literatura Portuguesa, onde você encontra disponibilizado, para leitura online e download, a versão digital (PDF) de História Crítica da Fábula na Literatura Portuguesa.

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