A escritora brasileira Cora Coralina, natural da bucólica Goiás Velho, no estado de Goiás,
é mais um exemplo de talento literário reconhecido tardiamente. Embora haja registro de
publicação de seus textos em jornais e revistas desde 1905 (com a crônica A Tua Volta, dedicada ao poeta Luiz do
Couto), foi apenas aos 75 anos que publicou o seu primeiro livro: Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais.
A notoriedade veio com a sua segunda edição, de 1978, que, ao merecer
entusiasmados elogios do escritor Carlos Drummond de Andrade: “Se há livros comovedores este é um deles!”,
chamou a atenção da crítica literária e de leitores em todo o país.
No Brasil, “intelectuais” preconceituosos, que
“confundem” simplicidade com ignorância, invejosos do talento nato alheio,
desdenham de escritores marcantes como Cora
Coralina, Patativa do Assaré, ou
mesmo Carolina de Jesus (que tem
momentos de rara beleza) por julgá-los semialfabetizados. Coralina frequentou a
escola por quatro anos (com a Mestra Silvina), Assaré, por um e Carolina de
Jesus por dois. Todavia, se essa gente metida a besta, com suas
pós-imbecilidades, se dessem ao “trabalho” de pesquisar, de fato, os autores e
suas obras (que possivelmente “conhecem” só de ouvir falar), iriam fazer
urgentemente um mea-culpa. Cada um
dos três autores, ao seu modo, canta a sua aldeia: velha cidade, sertão e
favela..., desnudando-se diante da palavra em verso ou prosa.
Há farto material biográfico e inúmeras teses
defendidas por brasileiros e estrangeiros sobre os três autores e suas obras,
inclusive na internet. Um dos trabalhos mais interessantes sobre Cora Coralina é El Discurso Poético y las Condiciones de su Producción: una lectura
comparada de la Poesís de Rosalía de Castro y de Cora Coralina - Tesis Doctoral
de Consuelo Brito de Freitas (Universidad Complutense de Madrid - Facultad
de Filología - 2004).
A
poética de Cora lembra o modernismo e o ritmo poético de Drummond. Conheça, em quatro postagens, um mínimo da obra
máxima de Cora Coralina. Comecei com
Antiguidades, segui com Minha Cidade e continuo com Todas as Vidas, do livro Poema dos Becos e Goiás e Estórias Mais.
TODAS
AS VIDAS
Cora Coralina
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto de terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo ser alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera das obscuras.
*
ilustração
de Joba Tridente
CORA
CORALINA (Goiás Velho, 20.08.1889 - Cidade de Goiás, 10.04.1985), escritora
de prosa (poética) e verso (em prosa) e doceira. Cora nasceu Ana Lins dos
Guimarães Peixoto Bretas: “Comecei a
escrever aos 14 de idade, numa idade em que não tinha leitura, não tinha
cultura e não tinha vivência. Mal tinha deixado a escola primária e escrevia o
que eu chamo hoje “os meus escritinhos”. Mas eu me enchia de muita vaidade e
para escrever me servia apenas do meu imaginário, nada mais. Tentei o verso,
mas, enquanto a poesia esteve determinada pela rima e pela métrica, nunca
consegui armar uma quadra. De modo que passei para a prosa, mas diziam em
Goiás, naquele tempo, que eu escrevia a poesia em prosa e nessa ocasião
procurei o meu pseudônimo porque me chamo Anna e, sendo Sant’Ana a padroeira da
cidade, tinha muita Ana naquele tempo e eu tinha medo que a minha glória
literária fosse atribuída a outra Ana. Procurei então, um nome que na cidade eu
não tivesse xará, achei Cora. Cora só … não chegava, encontrei Coralina. Juntei
os dois e hoje me identifico...” Em
sua Árvore Genealógica, Cora traz parentesco com o poeta Olavo Bilac
(1865-1918), por parte do pai Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto, e
com o poeta Luis do Couto (1884-1948), por parte da mãe Jacyntha Luiza do Couto
Brandão.
Após os inesperados elogios de Drummond e o
reconhecimento nacional, Cora Coralina recebeu, em 1983, o título Doutor
Honoris Causa da UFG e o Prêmio Juca Pato, da União Brasileira dos Escritores.
Livros de poesia: Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais
(1965, 1978 e 1980); Meu Livro de Cordel
(1976); Vintém de Cobre - Meias
confissões de Aninha (1983). Livro de conto: Estórias da Casa
Velha da Ponte (1985). Livros póstumos:
Meninos Verdes (infantil, 1986);
Tesouro da Casa Velha (poesia,
1996); A Moeda de Ouro que o Pato Engoliu (infantil,
1999); Vila Boa de Goiás (poesia,
2001); O Prato Azul-Pombinho (infantil,
2001).
muito belo!
ResponderExcluir..., verdadeiramente BELO!
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