quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Clarice Lispector: Das vantagens de ser bobo

A escritora Clarice Lispector nasceu em Tchetchelmik, Ucrânia, no dia 10 de dezembro de 1920. Hoje completaria 95 anos, não tivesse morrido há 38, no dia 09 de dezembro de 1977, na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Diva? Musa? Bruxa? Não importa o aglomerado, mas a essência, a substância da sua imortal obra literária. Das suas belas e saborosas crônicas, reunidas em títulos diversos: Para não esquecerA descoberta do mundo; Clarice na Cabeceira, selecionei duas. Ontem você leu sobre nascimento, vida e morte em as três experiências. A de hoje fala das vantagens de ser bobo.


Pintura de Clarice Lispector: Pássaro da Liberdade - 1975
das vantagens de ser bobo
Clarice Lispector
12 de setembro de 1969

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir tocar no mundo.

O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo, estou pensando."

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia.

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas.

O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo parece nunca ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoiévski.

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era que o aparelho estava tão estragado que o concerto seria caríssimo: mais vale comprar outro.

Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.

O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu. Aviso: não confundir bobos com burros.

Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!

Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação, os bobos ganham a vida.

Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas! Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

*

Clarice Lispector (1920 - 1977), a voz feminina mais intensa e triste da literatura brasileira, é autora de Romances: Perto do Coração Selvagem (1943); O Lustre (1946); A Cidade Sitiada (1949); A Maçã no Escuro (1961); A Paixão segundo G.H. (1964); Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres (1969); Água Viva (1973); Um Sopro de Vida (1978)..., Novela: A hora da estrela (1977)..., Contos: Alguns contos (1952); Laços de família (1960); A legião estrangeira (1964); Felicidade clandestina (1971); A imitação da rosa (1973); A via crucis do corpo (1974); Onde estivestes de noite? (1974); A bela e a fera (1979)..., Crônicas: Visão do esplendor - Impressões leves (1975); Para não esquecer (1978); A descoberta do mundo (1984); Clarice na Cabeceira (2009)..., Literatura  infantil: O mistério do coelho pensante (1967); A mulher que matou os peixes (1968); A vida íntima de Laura (1974); Quase de verdade (1978); Como nasceram as estrelas (1987). Há vasto material sobre ela na web: Releituras ou Clarice Lispector ou Wikipédia, entre outros.

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