sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Carlos Drummond de Andrade: Retrato de Família

O memorável livro A Rosa do Povo, do escritor modernista Carlos Drummond de Andrade, lançado em 1945, pela José Olympio, está completando 70 anos. A edição de 1984, lançada pela Record, traz uma apresentação do editor: “(...) A Rosa do Povo propõe o mesmo debate inesgotável sobre a situação do artista no mundo e sua posição em face dos problemas políticos e sociais do seu tempo. Drummond tomou posição e manteve-se fiel a seu ideário, embora reconhecendo a falácia de ilusões que se misturavam a perenes interesses de justiça, liberdade e paz. Ao lado disso, o livro é de intenso lirismo existencial.” e outra de Drummond: “(...) obra que, de certa maneira, reflete um "tempo", não só individual mas coletivo no país e no mundo. Escrito durante os anos cruciais da II Guerra Mundial, as preocupações então reinantes são identificadas em muitos de seus poemas, através da consciência e do modo pessoal de ser de quem os escreveu. Algumas ilusões feneceram, mas o sentimento moral é o mesmo - e está dito o necessário.”..., que você pode ler, na íntegra, na postagem anterior: Resíduo

Encerrando a comemoração de 70 anos da 1ª. edição de A Rosa do Povo, o quinto poema, dos 55 presentes no livro que não envelheceu um dia sequer: os resíduos de um Retrato de Família. O primeiro foi o emblemático Resíduo. O segundo, o desconfortável A Flor e a Náusea. O terceiro, o apavorante O Medo. O quarto, o estranho RolaMundo



RETRATO   DE   FAMÍLIA
Carlos Drummond de Andrade

Este retrato de família
está um tanto empoeirado.
Já não se vê no rosto do pai
quanto dinheiro ele ganhou.

Nas mãos dos tios não se percebem
as viagens que ambos fizeram.
A avó ficou lisa, amarela,
sem memórias da monarquia.

Os meninos, como estão mudados.
O rosto de Pedro é tranquilo,
usou os melhores sonhos.
E João não é mais mentiroso.

O jardim tornou-se fantástico.
As flores são placas cinzentas.
E a areia, sob pés extintos,
é um oceano de nevoa.

No semicírculo das cadeiras
nota-se certo movimento.
As crianças trocam de lugar,
mas sem barulho: é um retrato.

Vinte anos é um grande tempo.
Modela qualquer imagem.
Se uma figura vai murchando,
outra, sorrindo, se propõe.

Esses estranhos assentados,
meus parentes? Não acredito.
São visitas se divertindo
numa sala que se abre pouco.

Ficaram traços da família
perdidos no jeito dos corpos.
Bastante para sugerir
que um corpo é cheio de surpresas.

A moldura deste retrato
em vão prende suas personagens.
Estão ali voluntariamente,
saberiam — se preciso — voar.

Poderiam sutilizar-se
no claro-escuro do salão,
ir morar no fundo dos móveis
ou no bolso de velhos coletes.

A casa tem muitas gavetas
e papéis, escadas compridas.
Quem sabe a malícia das coisas,
quando a matéria se aborrece?

O retrato não me responde,
ele me fita e se contempla
nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam

os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram
dos que restaram. Percebo apenas
a estranha ideia de família

viajando através da carne.

*
foto e ilustração de Joba Tridente.2015


Carlos Drummond de Andrade  (Itabira, 31.10.1902 – Rio de Janeiro, 17.08.1987): cronista e escritor de prosa e verso. Farmacêutico formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, Drummond, que foi funcionário público, se dedicou à literatura desde muito jovem, sendo considerado um dos mais importantes no cenário brasileiro do século 20. No site releitura há um bom material biográfico sobre o mestre.

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