terça-feira, 6 de outubro de 2015

Carlos Drummond de Andrade: A Flor e a Náusea

O memorável livro A Rosa do Povo, do escritor modernista Carlos Drummond de Andrade, lançado em 1945, pela José Olympio, está completando 70 anos. A edição de 1984, lançada pela Record, traz uma apresentação do editor: “(...) A Rosa do Povo propõe o mesmo debate inesgotável sobre a situação do artista no mundo e sua posição em face dos problemas políticos e sociais do seu tempo. Drummond tomou posição e manteve-se fiel a seu ideário, embora reconhecendo a falácia de ilusões que se misturavam a perenes interesses de justiça, liberdade e paz. Ao lado disso, o livro é de intenso lirismo existencial.” e outra de Drummond: “(...) obra que, de certa maneira, reflete um "tempo", não só individual mas coletivo no país e no mundo. Escrito durante os anos cruciais da II Guerra Mundial, as preocupações então reinantes são identificadas em muitos de seus poemas, através da consciência e do modo pessoal de ser de quem os escreveu. Algumas ilusões feneceram, mas o sentimento moral é o mesmo - e está dito o necessário.” A íntegra das apresentações você confere na postagem anterior: Resíduo

Em comemoração aos 70 anos da 1ª. edição de A Rosa do Povo, estou publicando, nesta semana, 5 poemas, dos 55 presentes no livro. O primeiro foi o emblemático Resíduo. O segundo é o desconfortável A Flor e a Náusea.


                    

A  FLOR  E  A  NÁUSEA
Carlos Drummond de Andrade

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

*
ilustração de Joba Tridente.2015


Carlos Drummond de Andrade  (Itabira, 31.10.1902 – Rio de Janeiro, 17.08.1987): cronista e escritor de prosa e verso. Farmacêutico formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, Drummond, que foi funcionário público, se dedicou à literatura desde muito jovem, sendo considerado um dos mais importantes no cenário brasileiro do século 20. No site releitura há um bom material biográfico sobre o mestre.

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