O memorável
livro A Rosa do Povo, do escritor
modernista Carlos Drummond de Andrade,
lançado em 1945, pela José Olympio,
está completando 70 anos. A edição de 1984, lançada pela Record, traz uma apresentação do editor: “(...) A Rosa do Povo propõe o mesmo debate
inesgotável sobre a situação do artista no mundo e sua posição em face dos
problemas políticos e sociais do seu tempo. Drummond tomou posição e manteve-se
fiel a seu ideário, embora reconhecendo a falácia de ilusões que se misturavam
a perenes interesses de justiça, liberdade e paz. Ao lado disso, o livro é de
intenso lirismo existencial.” e outra de Drummond: “(...) obra que, de certa maneira, reflete um
"tempo", não só individual mas coletivo no país e no mundo. Escrito
durante os anos cruciais da II Guerra Mundial, as preocupações então reinantes
são identificadas em muitos de seus poemas, através da consciência e do modo
pessoal de ser de quem os escreveu. Algumas ilusões feneceram, mas o sentimento
moral é o mesmo - e está dito o necessário.” A íntegra das apresentações você confere na postagem anterior: Resíduo.
Em comemoração
aos 70 anos da 1ª. edição de A Rosa do
Povo, estou publicando, nesta semana, 5 poemas, dos 55 presentes no livro. O
primeiro foi o emblemático Resíduo. O
segundo é o desconfortável A Flor e a Náusea.
A FLOR E A NÁUSEA
Carlos
Drummond de Andrade
Preso à
minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos
sujos no relógio da torre:
Não, o
tempo não chegou de completa justiça.
O tempo
é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo
pobre, o poeta pobre
fundem-se
no mesmo impasse.
Em vão
me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a
pele das palavras há cifras e códigos.
O sol
consola os doentes e não os renova.
As
coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar
esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes
da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr
fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma
flor nasceu na rua!
Passem
de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma
flor ainda desbotada
ilude a
polícia, rompe o asfalto.
Façam
completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto
que uma flor nasceu.
Sua cor
não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me
no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
*
ilustração
de Joba Tridente.2015
Carlos
Drummond de Andrade
(Itabira, 31.10.1902 – Rio de Janeiro, 17.08.1987): cronista e escritor de
prosa e verso. Farmacêutico formado pela Universidade Federal de Minas Gerais,
Drummond, que foi funcionário público, se dedicou à literatura desde muito
jovem, sendo considerado um dos mais importantes no cenário brasileiro do
século 20. No site releitura
há um bom material biográfico sobre o mestre.
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