terça-feira, 15 de setembro de 2015

Carlos Drummond de Andrade: Adeus a Sete Quedas

Em 09 de setembro de 1982, próximo ao desaparecimento das Sete Quedas (ou Salto Guaíra), para dar lugar ao lago da Usina Hidrelétrica de Itaipu, o escritor Carlos Drummond de Andrade desabafou toda a sua inconformidade e dor no emblemático poema Adeus a Sete Quedas, publicado no Caderno B do Jornal do Brasil. Há uma versão de Adeus a Sete Quedas gravada em vídeo, infelizmente sem crédito do declamador, disponibilizado pela TV Paulo Freire no YouTube. Lá se vão 33 anos!

  









Adeus a Sete Quedas
Carlos Drummond de Andrade 

Sete quedas por mim passaram,
e todas sete se esvaíram.
Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele
a memória dos índios, pulverizada,
já não desperta o mínimo arrepio.
Aos mortos espanhóis, aos mortos bandeirantes,
aos apagados fogos
de Ciudad Real de Guaira vão juntar-se
os sete fantasmas das águas assassinadas
por mão do homem, dono do planeta.

Aqui outrora retumbaram vozes
da natureza imaginosa, fértil
em teatrais encenações de sonhos
aos homens ofertadas sem contrato.
Uma beleza-em-si, fantástico desenho
corporizado em cachões e bulcões de aéreo contorno
mostrava-se, despia-se, doava-se
em livre coito à humana vista extasiada.
Toda a arquitetura, toda a engenharia
de remotos egípcios e assírios
em vão ousaria criar tal monumento.

E desfaz-se
por ingrata intervenção de tecnocratas.
Aqui sete visões, sete esculturas
de líquido perfil
dissolvem-se entre cálculos computadorizados
de um país que vai deixando de ser humano
para tornar-se empresa gélida, mais nada.

Faz-se do movimento uma represa,
da agitação faz-se um silêncio
empresarial, de hidrelétrico projeto.
Vamos oferecer todo o conforto
que luz e força tarifadas geram
à custa de outro bem que não tem preço
nem resgate, empobrecendo a vida
na feroz ilusão de enriquecê-la.
Sete boiadas de água, sete touros brancos,
de bilhões de touros brancos integrados,
afundam-se em lagoa, e no vazio
que forma alguma ocupará, que resta
senão da natureza a dor sem gesto,
a calada censura
e a maldição que o tempo irá trazendo?

Vinde povos estranhos, vinde irmãos
brasileiros de todos os semblantes,
vinde ver e guardar
não mais a obra de arte natural
hoje cartão-postal a cores, melancólico,
mas seu espectro ainda rorejante
de irisadas pérolas de espuma e raiva,
passando, circunvoando,
entre pontes pênseis destruídas
e o inútil pranto das coisas,
sem acordar nenhum remorso,
nenhuma culpa ardente e confessada.
(“Assumimos a responsabilidade!
Estamos construindo o Brasil grande!”)
E patati patati patatá...

Sete quedas por nós passaram,
e não soubemos, ah, não soubemos amá-las,
e todas sete foram mortas,
e todas sete somem no ar,
sete fantasmas, sete crimes
dos vivos golpeando a vida
que nunca mais renascerá.


*
Foto: Lago de Itaipu. Fotógrafo (?). Fonte: web


Carlos Drummond de Andrade  (Itabira, 31.10.1902 - Rio de Janeiro, 17.08.1987): cronista e escritor de prosa e verso. Farmacêutico formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, Drummond, que foi funcionário público, se dedicou à literatura desde muito jovem, sendo considerado um dos mais importantes no cenário brasileiro do século 20. No site releitura há um bom material biográfico sobre o mestre.

2 comentários:

  1. Quando cursava Comunicação Social no CEUB, a professora de Comunicação em Língua Portuguesa, poetisa Adélia Prado, apresentou uma crônica de Drummond, para elaborarmos uma redação sob o mesmo tema. A crônica falava da ganância inescrupulosa dos jornalistas. Minha redação, feita na hora, foi: "Coração?". Não ouso comparar-me com o grande mestre, mas vou postar, no gmail lincado a esta mensagem, meu poema.

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    Respostas
    1. ..., olá, insequapavel, grato pela visita e comentário. ..., fiquei curioso, mas não encontrei a sua redação no gmail.

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