terça-feira, 4 de agosto de 2015

Luiz Guimarães Júnior: O Viajante

O fascinante poema O Viajante, do escritor Luiz Guimarães Júnior (1845-1898), é o segundo a ser publicado aqui no Falas ao Acaso. O anterior foi o belo A Morte da Águia. O terceiro será o sensual Idílio. Excetuando A Morte da Águia, que encontrei na antologia Lyra Popular Brasileira (1927), disponibilizada pela Brasiliana-USP, os outros dois estão na edição digital do livro Sonetos e Rimas, da Academia Brasileira de Letras. Saboreie bem cada estrofe de O Viajante. Deixe-se enredar por essa longa e prazerosa leitura (cinematográfica!)..., acredite, vale cada segundo de puro deslumbramento!



O Viajante
Luiz Guimarães Júnior

Quando da tarde a aragem refrescava
Os brancos lótus, a palmeira brava
      E os areais ardentes,
Quando o chacal nos juncos estendido,
Dormia ao melancólico zumbido
     Das abelhas luzentes;

Quando as cegonhas, em longínquo bando,
     Iam na etérea tela desenhando
       As fugitivas penas,
     E a doce lua, o pensativo astro,
     Arfava como um seio de alabastro
      Entre as nuvens serenas;

Sobre o elefante branco ajaezado
     De corais e rubins, – monstro sagrado
      No Oceano e no Levante, –
     Como visão estranha ela passava,
     E em roda dela alegre caminhava
      Um cortejo brilhante.

Era a princesa Aral, a descendente
     Da mais guerreira tribo, a mais valente
      Das tribos africanas:
     Negra e amorosa como a Noite, – havia
     Nos seus profundos olhos a ardentia
      Das ondas soberanas.

Mais de um guerreiro altivo e poderoso
     Vindo de longes terras glorioso
      De louros revestido,
     Tentou roubar-lhe o coração: no entanto,
     Ela foi surda à glória, ao rogo, ao pranto
      E ele partiu vencido.

Nada a ataria além do seu deserto
     Horrendo e imenso, em cujo seio aberto
      Ao sol e às estrelas,
     Mora o leão enorme, e o tigre escuro
     Espreita à sombra do covil impuro
      O sono das gazelas.

E sempre ao pôr do sol irradiante
     Sobre o nevado e esplêndido elefante
      A princesa sorria,
     Calcando o pó dos seus reais domínios,
     Enquanto ao longe, em vagos tons carmíneos,
      Lento expirava o dia.

Ágil como a pantera e tão mimosa
     Como o botão da fulva tuberosa
      Entre os juncais virentes,
     Deslizava-lhe a vida sem que o pranto
     Até então lhe profanasse o encanto
      Dos olhos transparentes.

Um dia aos seus ouvidos delicados
     Soaram gritos, furiosos brados
      Da tribo reunida:
     Rápida a bela, inquieta e curiosa,
     Atravessando a turba revoltosa,
      – Alegre e surpreendida –

Viu entre os seus guerreiros arquejantes,
     Vingativos, coléricos, possantes,
      Um branco – um forasteiro:
     Firme como o destino ele sorria,
     E o seu olhar heroico parecia
      Lutar com o mundo inteiro.

Mil vezes mais que a cintilante e pura
     Asa da garça era a perfeita alvura
      De sua ebúrnea fronte;
     E o seu cabelo espesso, ondeante e loiro,
     Brilhava como as alvoradas d’oiro
     No pálido horizonte.

Em sua branca mão nervosa e fina
     Luzia ao sol a esbelta carabina
      De emblemas esmaltada;
     Sob os seus pés – empoeirada e fria –
     Uma formosa antílope jazia
      No flanco baleada.

– “És a rainha, bem o vejo: és nobre,
     Em tua calma fronte o olhar descobre
      O mando sobranceiro;
     És a Beleza: a tua formosura
     Como a da Noite assombra a criatura”.
      Começou o estrangeiro.

Igual ao débil nenúfar do lago
     Da estiva brisa ao maternal afago
      A mesquinha ignorante,
     Senhora do deserto livre e infindo,
     Estremecia cabisbaixa ouvindo,
      O loiro viajante.

– “Dos meus perdi-me, há quase um dia inteiro,
     E um cão, leal e bravo companheiro
      Que sempre me seguia,
     Morreu de febre no areal ardente:
     Peço-te pois um teto unicamente
      Até romper o dia”.

Tímida a um tempo e majestosa, a filha
     Da grande tribo, a negra maravilha,
      Virgem e soberana,
     Abriu a turba com um sorriso honesto,
     E ao forasteiro ofereceu num gesto
      Sua régia cabana.

O sol vibrava as crepitantes setas
     Sobre o areal em fogo: – ágeis, inquietas
As abelhas zumbiam...
     De longe em longe os gritos penetrantes
     Duma afastada tropa de elefantes
      Os ecos repetiam.

E do estrangeiro o sono respeitado,
     Tal como um rio plácido e sagrado,
      Que corre em abandono,
     Ninguém ousou quebrar: – fora punido
     Com suplícios cruéis o destemido
      Que lhe turbasse o sono.

Caiu a tarde, e a noite mansamente
     Desenrolou o véu fosforescente
      Pela ínvia grandeza
     Da solidão tremenda e pavorosa...
     No entanto, muda, trêmula, chorosa,
      A cândida princesa

Cismava... Em quê? Num mundo iluminado,
     Todo de loiras frontes povoado...
      E um turbilhão de cenas
     Iam-lhe na alma exausta resvalando,
     À rouca voz do solitário bando
      Das lúgubres hienas.

Ao romper da manhã o forasteiro
     Disse-lhe: – e o seu olhar longo e fagueiro
      Turbava-a e comovia –
     – “Tu mereceras mais que um trono: a terra
     Bem poucas almas como a tua encerra:
      Deus te salve, Maria”.

Quando do céu na gaze diamantina
     Sumiu-se enfim a longa carabina
      Do moço viandante,
     Ela curvou a fronte dolorida,
     Como sucede à antílope ferida
      E à corsa agonizante.

Nunca mais ao luzir do sol cadente,
     Sobre o elefante branco a onipotente
      Princesa acompanhada
     Por seus fiéis e inúmeros guerreiros,
     Foi respirar os hálitos primeiros
      Da noite embalsamada.

Nunca mais uma flor, uma esperança
     Veio adornar-lhe a fronte, e à semelhança
      Do meigo aloés queimado
     Pelo simum revolto, ela sentia
     Faltar-lhe o sangue e em ânsias comprimia
      O seio amargurado.

Às vezes – só – em frente do deserto
     O seu olhar saudoso, vago e incerto
      No espaço se embebia,
     E a sua boca tremulante e pura
     Repetia com mística ternura:
      “Deus te salve, Maria”.

A tribo inteira em grupos, lacrimosa,
     Contemplava-a de longe, e a mão calosa
      Do possante guerreiro,
     Brandindo a lança – que o furor agita –
     Ameaçava a sombra ímpia e maldita
      Do branco aventureiro.

E o dia frouxo e lânguido expirava:
     O sol de mornas vagas inundava
      As solidões medonhas...
     E além, além, no éter transparente
     Ia-se destacando lentamente
      O voo das cegonhas.

*
Ilustração de Joba Tridente - 2015


LUIZ Caetano Pereira GUIMARÃES JÚNIOR (1845-1898): advogado, diplomata, escritor (de verso e prosa), jornalista e teatrólogo brasileiro. Graduado pela Faculdade de Direito do Recife, seguiu a carreira diplomática, servindo em Santiago do Chile, Roma e Lisboa..., onde, ao se aposentar, fixou moradia e desfrutou da prazerosa companhia de Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, Fialho Almeida. Guimarães Júnior foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras e colaborador de diversos veículos de comunicação: Jornal do Domingo: Revista Universal (1881-1888); Ribaltas e Gambiarras (1881), A ReformaA RepúblicaO Correio Paulistano; Imprensa Acadêmica de São PauloGazeta de Notícias. Na web há farto material sobre Luiz Guimarães Junior, autor de Poesia: Corimbos (1866); Noturnos (1872); Sonetos e Rimas (1880); Ficção: Filigranas (1872); Contos sem Pretensão (1872); Curvas e Ziguezagues (1872), Caprichos Humorísticos em Prosa (1872). Romance: Lírio Branco (1862); A Família Agulha (1870); Teatro: Uma Cena Contemporânea (1862); As Quedas Fatais; André Vidal; As Joias Indiscretas; Um Pequeno Demônio; O Caminho Mais Curto; Os Amores Que Passam; Valentina; A Alma Do Outro Mundo (1913); Biografias: A. Carlos Gomes; Pedro Américo (1871). Iracema Guimarães Vilela, filha do escritor, em seu livro Luís Guimarães Júnior: Ensaio Biobibliográfico (1934), revela que o autor, pouco antes de morrer, em 1898, queimou diversos manuscritos (peças, crônicas e poemas), incluindo as duas primeiras edições de Sonetos e Rimas (1880 e 1886) suas últimas obras impressas em vida.

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