sábado, 29 de março de 2014

Amadeu Amaral: Poesia da Viola - 2

Conheci o livro Poesia da Viola (Folclore Paulista), de Amadeu Amaral, lançado em 1921, vasculhando o fascinante arquivo digital do projeto Brasiliana USP. Trata-se de uma interessante “Conferência proferida em S. José do Rio Pardo, em 8 de Junho de 1921, a beneficio integral do Asilo de Inválidos «Padre Euclides Carneiro», daquela cidade, e mandada imprimir pela mesma instituição, ainda a seu beneficio.” Compilei três distintas modas, acompanhadas da análise de Amadeu Amaral.


A “Moda” de Fantasia

(...) Recitei-vos duas modas de amor. O amor é que fornece tema para a maioria dessas composições; mas também cantam elas, em vários tons, as misérias do pobre campônio, cantam aventuras e trabalhos, cantam os mais diversos acontecimentos da vida social, observados pelo cantador. E há também as modas de pura fantasia e brincadeira, como esta que ouvi cantada por um caipira dos arredores desta cidade e que é, indisputavelmente, bem tecida:


O Casamento da Filha da Onça

Ajuntaram a bicharada,
p'ra fazer uma reunião,
p'ra fazer uma grande festa
nesse centro de sertão.

A onça tinha uma filha
que era linda de feição;
pra não misturar co'a raça,
fez casar com primo-irmão.

O tamanduá era o padre,
o lobo era o sacristão:
o macaco, o juiz de paz,
o veado era escrivão.

A noiva sabia ler,
o noivo disse que não;
p'ra assiná a rogo do noivo,
mandaram chamar o leão.

A barraca é do fandango,
a sala é da coleição: (*)
repunaro o gambá
por chegar de pé no chão ;

(Mas) logo foi alumiado
pra servente do quentão.
Mandaram chamá o bugio
p'ra servir os folgasão.

A capivara com a paca
se arranjaram num pontão.
Brinco de ouro nas orelhas,
vestido de gorgorão,

sapatinhos de fivela,
carreirinha de botão,
ficaram na maior forma
p'ra ser damas num salão.

Mandaram buscá instrumento
nesse centro de matão;
o tatu veio de viola,
o lagarto de violão.

Tocador que ali tocava
era um bando de pavão,
que cobriro o mundo inteiro
de toque de bamburrão.

O cuati namorou a cutia
pela réstea do lampião.
O cateto chegou perto,
ele foi não achou bão;

logo formaro uma briga
arrancaro do facão.
Veio um bando de queixadas,
levou tudo p'ra a prisão.

(*) Coleição, gente fina.

 *
Ilustração de Joba Tridente - 2014

Amadeu Amaral (1875-1929), poeta, folclorista, filólogo e ensaísta. Autodidata (assistiu algumas aulas do Curso Anexo da Faculdade de Direito), ingressou no jornalismo trabalhando no Correio Paulistano, O Estado de S. Paulo, Gazeta de Notícias. No Brasil, foi o primeiro a estudar cientificamente um dialeto regional. Dialeto Caipira, publicado em 1920, escrito à luz da linguística, estuda o linguajar do caipira paulista da área do vale do rio Paraíba, analisando suas formas e esmiuçando-lhe o vocabulário. Poesia: Urzes (1899); Névoa (1902); Espumas (1917); Lâmpada Antiga (1924). Ensaios: Letras floridas (1920); O dialeto caipira (1920); A Poesia da Viola - Folclore Paulista (1921), O elogio da mediocridade (1924). Póstumo: Memorial de um passageiro de bonde (1931), Tradições populares (1948). Fonte: Academia Brasileira de Letras.

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