terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Cidades Minguantes: O Ouvir

Escrevi Cidades Minguantes quando participava do Projeto Comboio Cultural, que durante um ano rodou todo o Paraná, levando literatura, teatro, música, dança, às cidades mais periféricas do estado. As seis crônicas foram publicadas, originalmente, no jornal Gazeta do Povo, aqui de Curitiba, entre outubro e novembro de 2001. Postei no Falas ao Acaso em abril de 2011. Mas, como em 2014 elas finalmente servirão de base para a concretização de um antigo projeto, em fase de planejamento, decidi fazer uma nova postagem!


Cidades Minguantes: O Ouvir
Joba Tridente

Viajar ao interior, como Oficineiro Cultural, mais que levar informação é acolher o desconhecido. É descer do pedestal e reler a si mesmo.

Viajando pelo interior, como Oficineiro Cultural, conheci lugares e gentes que realmente esperam queamanhã seja um novo dia”. Vi cidades quemuito beiram a ficção regional. Num futuro distraído é bem possível que algumas não passem de uma breve nota num livro de geografia. Nesta segunda crônica, sobre as cidades minguantes, vejo que fui longe para falar, querendo ensinar, e aprendi a ouvir para compreender o que via.

Ao chegar no interior, primeiro deve-se pousar o olhar sem pressa sobre todas as coisas, para não se sentir um estrangeiro antes da hora. Depois, é preciso reeducar os ouvidos aos sons desconhecidos: cantos e falas. A pressa ofusca-nos diante de tanta cor e também pode nos ensurdecer. Então, mais que dizer a que veio é preciso ouvir os que vêm contar os segredos inconfessáveis do lugar.

Uma velha senhora que, há vinte e oito anos, vai de casa em casa pra vender um famoso cosmético, não reclama da viuvez prematura ou dos filhos que partiram, mas da quantidade de vendedoras de beleza ali naquela lonjura. Talvez se fizesse doces pra fora a vida pudesse melhorar. Entre a vaidade e a gula, fica com a vaidade. A começar uma história nova num caderno velho, prefere continuar trabalhando na antiga. O vigilante sorridente, que faz a ronda numa  bicicleta, mais que saber sobre Curitiba, quer falar do filho que passa por um difícil tratamento de saúde na capital. Falar das viagens periódicas que faz pra visitar a criança, da sua vida, trabalho, sonhos, esperanças, como se fosse um velho conhecido. Quer parecer mais forte do que realmente é e antes que seus olhos marejem, dá um aperto de mão, sobe na bicicleta e some na primeira esquina. queria se fazer ouvir, desabafar, não se sentir sozinho naquela cidade onde parece apenas sair gente e nunca chegar.

No interior minguante ou ainda não, o cumprimento pode ser o convite pra uma conversa imprevisível. Enquanto umas crianças falam dos seus afazeres escolares ou comerciais, outras fofocam. Como se fosse importante saber o que não foi dito nem no confessionário para o padre, desvela-se na ingenuidade infantil a cara da cidade. Dedos apontam um e outro: relatam, delatam, condenam. Até mesmo os cães de ninguém latem para onde se apontam os dedos. Enquanto crianças inventam histórias para parecerem espertas e importantes, peões contam como caçam e matam animais silvestres e mostram o couro da cobra ou a gaiola onde aprisionam o bico-de-ferro, o cantor das madrugadas, que renderá míseros trocado.

Tantas e tontas coisas sabe-se ao viajar ao interior. Quando não se deixa trair por um escutar apressado é possível extasiar-se diante de sabiás e bem-te-vis que disputam, no canto e na garra, uma fonte luminosa, seca e abandonada, no meio da praça. Quando se tem a calma interior é possível ver, ouvir e cheirar as coisas de uma forma diferente.

(*)
Ilustração: Fotoarte de Joba Tridente

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