quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Cidades Minguantes: O Cheirar

Escrevi Cidades Minguantes quando participava do Projeto Comboio Cultural, que durante um ano rodou todo o Paraná, levando literatura, teatro, música, dança, às cidades mais periféricas do estado. As seis crônicas foram publicadas, originalmente, no jornal Gazeta do Povo, aqui de Curitiba, entre outubro e novembro de 2001. Postei no Falas ao Acaso em abril de 2011. Mas, como em 2014 elas finalmente servirão de base para a concretização de um antigo projeto, em fase de planejamento, decidi fazer uma nova postagem!


Cidades Minguantes: O Cheirar
Joba Tridente

Viajar ao interior, como Oficineiro Cultural, mais que levar informação é acolher o desconhecido. É descer do pedestal e reler a si mesmo.

Ir ao interior é estar preparado para o novo que entorpece os sentidos. Ir ao interior é se deixar envolver pela luz, pelo som, pelo aroma de cada coisa desconhecida pela distância. Ir ao interior é se deixar ficar quieto, por um pouco, até que o coração reencontre o ritmo da tranquilidade. Ir ao interior é também se deparar com uma realidade que se quer ficção. Esta terceira crônica fala do aroma que resiste à face de qualquer cidade minguante.

Para se chegar ao interior é preciso vencer o vazio das estradas. O vazio das terras que servem apenas cana, trigo, soja, pasto. E também aqueles ponteados por uma árvore aqui e outra acolá. Ou por filas de eucaliptos e pinheiros para o corte, como os bois, mugindo no pasto onde se perdem a vista e os ouvidos. É na estrada que olfato urbano começa ser depurado com os aromas rurais: estrume, terra molhada, usina de cana, gado, queimada, mato.

As cidades minguantes têm cheiros próprios e seus mistérios. No banco da praça da igreja um velho conta, para um garoto curioso, que sabe cheirar o vento e pelo cheiro adivinhar se a chuva que se aproxima é leve, tempestade ou de pedra. O menino que sonha ir embora, antes que seja o último a apagar a luz da pequena cidade, não acredita. Diz que ninguém pode cheirar o vento. O senhor, que nunca saiu dali, apenas tira o chapéu, ajeita os ralos cabelos brancos e sorri. Para mim é pura magia cheirar o vento e saber da chuva. Para o velho é a lição do pai cego. Quem quiser sentir o aroma do que é simples basta andar sem medo, pois o medo embaralha os odores, recomenda o velho que fecha os olhos e sabe quem já foi embora e quem ainda resiste à sua conversa. A cidade guarda o perfume de cada habitante, mas a casa guarda a essência de cada morador, ensina. O velho de faro apurado, um cego às avessas, não precisa caminhar pela cidade para senti-la menor. Ele a cheira todos os dias e quando é preciso recorre à memória, para dizer a fragrância que falta. De cada coisa conhecida, gente, flor ou bicho este ser tão simples tem guardado o cheiro, menos o do futuro.

No interior em que quase todos querem ser meros passageiros para a capital, poucos sentem o aroma do incenso, do bálsamo, da erva aromática, do fruto maduro, e sabem de onde vem. Na distância, o preferível é negar o incômodo cheiro da miséria, do desprezo, da solidão, da infância interrompida ou da velhice inacabada. É mais confortável sentir apenas o perfume inebriante da dama-da-noite nos jardins ou nas calçadas. No cotidiano da vida minguante das pequenas cidades há quem não sente o cheiro da própria alma no interior. E quem prefere fazer plástica no nariz.

Num jogo de sensações é preciso estar sereno para perceber a fragrância de cada coisa e sentir o seu inesquecível sabor.

(*)
Ilustração: Fotoarte de Joba Tridente

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