quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Solano Trindade: Tem Gente Com Fome


As lembranças das viagens de trem, na minha infância, são as melhores, delícia das delícias. Não estou falando de (trem) metrô ou de (trem) subúrbio..., falo de Trem de Ferro que me trazia de Oswaldo Cruz para Tupã, Marília, São Paulo. Em outubro de 2012, quando preparava material para uma Oficina de Poesia Aleatória, reencontrei o Trem viajando na diversidade poética de Manuel Bandeira: Trem de Ferro; de Ascenso Carneiro: Trem de Alagoas; de Solano Trindade: Tem Gente Com Fome (Trem da Leopoldina); e de António Jacinto: Castigo P’ro Comboio Malandro (Trem Angolano). As minhas viagens juvenis tinham a felicidade de Bandeira e de Carneiro..., não a angústia de Jacinto e Trindade.

Nesta 4ª. Estação, a parada é (ainda) do mais contundente dos trens brasileiros, no verbo ferino (porém terno e solidário) de Solano Trindade: Tem Gente Com Fome, publicado em Poemas de uma Vida Simples, livro que foi apreendido, em 1944, e levou o poeta para a prisão.


Tem Gente Com Fome

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Piiiiii
Estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuuu


Ilustração de Joba Tridente - 2013


Para Bruno Fernandes: “...o poema “Tem gente com Fome” é uma sátira ao célebre poema “Trem de Ferro”, de Manuel Bandeira. (...) O poema de Solano Trindade não apenas ironiza o de Bandeira, como por exemplo, faz o poeta angolano António Jacinto, com  “Castigo pro comboio Malandro”. Solano vai além dessa identificação, e realiza a própria antítese ao trabalho do autor de “Trem de Ferro”. Assim, enquanto Manuel Bandeira percorre as ruas da cidade mostrando a paisagem do interior, numa viagem de aventuras, Solano Trindade carrega em seu “trem sujo da Leopoldina” toda a angústia, pobreza, falta de afeto e injustiça a qual estão submetidos os infelizes passageiros do cotidiano, abafados pelo “autoritário apito do trem”.” - em Literatura e Identidade: poesia de representação em busca de uma cidadania negada - tese de Doutoramento em Pós-Colonialismos e Cidadania Global - Centro de Estudos Sociais/Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2011.

Solano Trindade (Recife, 1908 - Rio de Janeiro, 1974) foi um multiartista: folclorista, pintor, escritor, ator, teatrólogo, cineasta. Nos anos 1930 idealizou o I Congresso Afro-Brasileiro, no Recife, e fundou o Centro Cultural Afro-Brasileiro e a Frente Negra Pernambucana. Em 1945, com Abdias Nascimento, criou o Comitê Democrático Afro-Brasileiro e o Teatro Experimental do Negro. Com Haroldo Costa fundou o Teatro Folclórico. Na década de 1950 criou o Teatro Popular Brasileiro e o grupo de dança brasileira Brasiliana. Trindade atuou em filmes como A Hora e a Vez de Augusto Matraga (de Roberto Santos, 1965) e O Santo Milagroso (de Carlos Coimbra, 1966) e foi o responsável pela formatação da Feira das Artes do Embu, em São Paulo. Admirado por Carlos Drummond de Andrade, Otto Maria Carpeaux, Afonso Schmidt, Roger Bastides,  Darcy Ribeiro, Sérgio Milliet, o poeta Solano Trindade publicou Poemas Negros (1936); Poemas de uma Vida Simples (1944); Seis Tempos de Poesia (1958); Cantares ao Meu Povo (1961). Em 1975 o poema Tem Gente Com Fome, musicado por João Ricardo, não foi liberado pela censura para o disco do Secos & Molhados, mas foi gravado por Ney Matogrosso em 1979, no LP Seu Tipo. Solano foi tema da Escola de Samba Vai-Vai, em 1976.

Vídeos com interpretações de Tem Gente Com Fome: Raquel Trindade 1 e Raquel Trindade 2 ; Ney Matogrosso (incompleto); Juan Angel Italiano.

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