Aproveitando a comemoração da Semana da Criança, no Brasil, como desculpa, estou publicando uma
série de sete contos do grande escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, que já apareceu por aqui, em setembro e
outubro de 2014, com os emblemáticos O Livro Mudo, A Família Feliz e Só A Pura Verdade. A obra de
Andersen, com sua rica alegoria, também (ou até mais) cala fundo na consciência
do público adulto. Algumas ilustrações Edna F. Hart e ou de F. Reiß
são das edições originais disponibilizadas pela Biblioteca Gutemberg e ou Agrupamento
de Escolas de Rio de Mouro. Ontem foi dia d’O Colarinho Postiço. Hoje o espaço é d’O Papílio.
O PAPÍLIO¹
Hans Christian Andersen
ilustração de Joba Tridente
O papílio queria ter uma namorada. Como era natural, queria
arranjar uma pequena e gentil flor. Olhou para elas. Cada uma estava sentada,
sossegada e discreta no seu caule, como uma menina deve estar quando se não é
noiva! Mas aqui havia tantas a escolher entre elas, que a escolha, para ele, se
tornava uma dificuldade. Era uma dificuldade que pareceu ao papílio não merecer
a pena, e assim voou para a margarida, que a esta chamam os franceses de
Marguerite. Sabem que pode profetizar, e é isso que faz quando os namorados lhe
colhem pétala por pétala e, por cada uma, fazem uma pergunta acerca do seu
querido:
— Do coração?… Com mágoa?… Gosta muito?… Um pouquinho?… Mesmo
nada? — ou qualquer coisa assim.
Cada pétala responde na sua língua. O papílio também veio
para perguntar. Não arrancou as pétalas, mas beijou cada uma delas, com a ideia
de que se vai mais longe usando de gentileza.
— Doce Marguerite — disse ele. — Sois a senhora mais
inteligente de todas as flores! Percebeis dessa coisa de profetizar! Dizei-me,
vou ter esta ou aquela! Ou quem vou ter? Se o souber, posso imediatamente voar
para ela e pedir-lhe a mão!
Mas a Margarida nem lhe respondeu. Não podia admitir que lhe
tivesse chamado senhora, pois era ainda menina e, desta maneira, não se é
senhora. Perguntou uma segunda vez e perguntou uma terceira, o papílio.
Como não conseguiu arrancar uma única palavra dela, achou que
não merecia a pena voltar a fazer perguntas e voou, sem demora, a fazer a sua
corte.
Era no princípio da primavera. Os campos estavam cheios de
campânulas². — São muito delicadas — disse o papílio. — Encantadoras
confirmantezinhas! Mas um tanto verdinhas! — Ele, como todos os jovens,
aspirava a moças mais maduras. Voou depois para as anémonas. Eram demasiado
amargas; as violetas, demasiado exaltadas; as tulipas, demasiado berrantes; as
narcíseas, demasiado burguesas; as flores de tília, demasiado pequenas e, ainda
por cima, tinham uma família muito grande; as flores da macieira eram como as
rosas quando as olhava, mas brotavam hoje e tombavam amanhã, logo que o vento
nelas soprava. Seria um casamento de muito pouca dura, parecia-lhe. A flor da
ervilha era a que mais lhe agradava, vermelha e branca, pura e fina. Pertencia
às caseiras, que têm boa aparência e são boas para a cozinha. Estava quase a
pedir-lhe a mão, mas nesse momento viu, por ali, suspensa, uma vagem de ervilha
com uma flor murcha na ponta.
— Quem é esta? — perguntou ele.
— A minha irmã — respondeu a flor da ervilha.
— Ah! Sim! É assim que vireis a parecer-vos mais tarde!
— Isso assustou o papílio e voou dali para longe.
Madressilvas pendiam sobre o muro. Estava cheio destas meninas, de rosto comprido
e amarelas de tez. Esse género não lhe agradou. Sim, mas o que lhe agradou,
então?
Perguntai-lhe!
A primavera foi-se, o verão foi-se e assim chegou o outono; e
ele estava na mesma.
E as flores vieram com os mais bonitos vestidos. Mas de que
lhes servia? Aqui não se encontrava a disposição fresca e o perfume da
juventude. Ao perfume aspira precisamente o coração, com a idade, e perfume não
há, especialmente nas dálias e nas rosas malvas. Assim procurou o papílio, embaixo, a hortelã-pimenta.
— Não tem mesmo nenhuma flor, mas toda ela é uma flor, deita
cheiro da raiz ao alto. Tem perfume de flor em cada pétala. É esta que quero!
Mas a hortelã-pimenta ficou tesa e quieta. Por fim, disse:
— Apenas amizade e nada mais. Estou velha e sois velho! Podemos
muito bem viver um para o outro, mas casar-nos… não! Não sejamos loucos, na
nossa idade avançada!
E assim o papílio não encontrou nenhuma noiva. Procurou por
muito tempo e isso é coisa que não se deve fazer. O papílio ficou solteirão,
como se costuma dizer.
Tarde era agora, outono, com chuva e mau tempo. O vento
soprava, frio, sobre as costas dos velhos salgueiros, fazendo-os ranger. Não
era bom andar a voar cá fora com roupa de verão. Ainda se vai ser apanhado pelo
amor, como se diz. Mas o papílio não voava ao ar livre pois tinha vindo, por
acaso, para dentro de portas, onde havia lume no fogão de azulejos. Sim, estava
quente como no verão. Podia viver. Mas viver não é bastante — disse ele. — Sol,
liberdade e uma florzinha tem que se ter!
E voou para uma janela. Foi visto, admirado e posto num
alfinete numa caixa de curiosidades. Mais não se podia fazer por ele.
— Agora estou também sentado no caule como as flores — disse
o papílio. — Contudo, não é nada agradável! É como estar casado. Está-se
sentado e amarrado!
— E assim se consolou.
— É uma má consolação! — disseram as flores do vaso que
estava na sala.
— Mas nas flores do vaso não se pode inteiramente confiar —
foi a opinião do papílio. — Lidam demasiado com os homens!
1 - Espécie de borboleta do gênero de insetos lepidópteros,
Sommerfuglen, borboleta em dinamarquês, é masculino, dando sentido ao conto.
Manteve-se, na tradução, o substantivo masculino, de idêntico significado, para
manter a distinção do autor, entre os gêneros. (N. do T.)
2 - E crocos, no texto, que se eliminou por serem masculinos.
(N. do T.)
Hans Christian Andersen nasceu em Odense, 1805, e morreu em
Copenhague, 1875. O notório escritor dinamarquês teve uma infância pobre, mas
enriquecida com as histórias que seu pai, humilde lhe contava, encenando com
bonecos. Após a morte do pai, fugiu de casa e aos 14 anos começou a trabalhar
no Teatro Real, em Copenhague. Andersen foi ator, corista, bailarino e autor. A
maior parte de seus estudo foram financiados pelo diretor de teatro Jonas
Collin. Entre outras obras, publicou: O
Improvisador (1835), Nada como
um menestrel (1837), Livro
de Imagens sem Imagens (1840), O romance da minha vida (autobiografia em dois volumes, 1847).
Ganhou renome com os contos (Histórias e
Aventuras) para o público infantojuvenil, publicada de 1835 a 1872. Há
farto material na web sobre o grande
mestre.
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