terça-feira, 13 de outubro de 2015

Hans Christian Andersen: O Caracol e a Rosa

Aproveitando a comemoração da Semana da Criança, no Brasil, como desculpa, estou publicando uma série de sete contos do grande escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, que já apareceu por aqui, em setembro e outubro de 2014, os emblemáticos O Livro Mudo, A Família Feliz e Só A Pura Verdade. A obra de Andersen, com sua rica alegoria, também (ou até mais) cala fundo na consciência do público adulto. As ilustrações de Edna F. Hart e de F. Reiß são das edições originais disponibilizadas pela Biblioteca Gutemberg e ou Agrupamento de Escolas de Rio de Mouro. Ontem foi dia das Histórias do Brilho do Sol. Hoje é o dia d’O Caracol e a Rosa.



O CARACOL E A ROSA
Hans Christian Andersen
ilustração de Joba Tridente


Em redor do jardim crescia um anel de aveleiras. Para além delas estendiam-se os campos e os prados onde pastavam ovelhas e vacas. No centro do jardim crescia uma roseira carregada de rosas e, à sua sombra, vivia um caracol que tinha muito dentro de si — nomeadamente, tinha-se a si próprio.

Paciência! — dizia o caracol. — Há de chegar a minha hora. Farei muito mais do que dar rosas ou avelãs, muitíssimo mais do que dar leite como fazem as vacas e as ovelhas.

— Espero muito de ti — disse a roseira. — Posso perguntar-te quando me mostrarás o que és capaz de fazer?

— Calma! — respondeu o caracol. — Andas sempre apressada. Não é assim que se preparam as boas surpresas.

Um ano mais tarde, o caracol estendia-se ao sol quase no mesmo lugar onde estivera no ano anterior, enquanto a roseira se afadigava a criar novos botões e a manter todas as rosas frescas e luzidias. O caracol pôs meio corpo fora da carapaça, estendeu os pauzinhos e voltou a recolhê-los.

— Nada de novo — disse. — Não se vislumbra progresso algum. A roseira continua a tratar das suas rosas e isso é tudo o que faz na vida.

Passou o verão e chegou o outono. A roseira continuou a dar novos botões e novas rosas. Por fim, a neve começou a cair e o tempo ficou húmido e frio. A roseira dobrou-se sobre a terra e o caracol escondeu-se no solo.

Começou um novo ano e as rosas voltaram a florir e o caracol voltou a sair.

— Já és uma velha roseira — disse o caracol. — Deves apressar-te e morrer, porque já deste ao mundo tudo o que podias dar. Se isso teve algum valor é coisa em que ainda não tive tempo de pensar. Mas o que é certo é que não fizeste nada para progredires pessoalmente. Caso contrário, terias feito nascer outras flores. O que tens a dizer sobre isto? Em breve serás apenas um tronco seco. Compreendes o que te estou a dizer?

— Estás a assustar-me! — respondeu a roseira. — Nunca pensei nisso.

— Não, nunca te deste ao trabalho de pensar. Alguma vez te interrogaste por que razão florescias e como florescias? E porque o fazias dessa forma e não de outra?

— Não — respondeu a roseira. — Ficava feliz ao fazê-lo e não o podia evitar. O sol era tão quente e o ar tão refrescante!... Bebia o límpido orvalho e a chuva generosa. Respirava, vivia. A minha força provinha do interior da terra e também do ar. Sentia uma felicidade sempre renovada, intensa e, por isso, tinha de florescer. Era essa a minha vida. Não podia fazer outra coisa.

— Tiveste uma vida demasiado fácil — disse o caracol.

— É verdade — concordou a roseira. — Davam-me tudo. Mas tu tiveste ainda mais sorte do que eu. Foste uma dessas criaturas que pensam muito, um desses seres tremendamente inteligentes que se propõem deslumbrar o mundo.

— Não, não, de modo nenhum — negou o caracol. — O mundo não existe para mim. Que tenho eu a ver com ele? Já é suficiente que me ocupe comigo e só comigo.

— Mas não devíamos todos nós dar aos outros o melhor de nós próprios? É verdade que só te dei rosas; mas tu, que és tão dotado, o que deste ao mundo? O que podes dar-lhe?

— Dar-lhe? Dar ao mundo? Cuspo no mundo! Para que serve o mundo? Não significa nada para mim. Anda, continua a cultivar as tuas rosas. Só serves para isso. Deixa que os castanheiros produzam os seus frutos, que as vacas e as ovelhas deem o seu leite. Cada um tem o seu público e eu tenho também o meu dentro de mim mesmo. Recolho-me no meu interior e aí ficarei! O mundo não me interessa.

Dizendo isto, o caracol meteu-se dentro da sua carapaça e por lá ficou.

— Que pena! — lamentou-se a roseira. — Não tenho forma de me esconder, por mais que tente. Hei de regressar uma e outra vez, mostrando-me através das minhas rosas. As suas pétalas caem e o vento arrasta-as. Certo dia vi uma mãe que guardou uma das minhas flores entre as folhas do livro de orações; outra vez, uma rapariga bonita prendeu ao peito uma das minhas rosas e houve também um menino que beijou outra rosa, cheio de alegria. Todos esses momentos fizeram com que me sentisse bem, foram uma verdadeira bênção. São essas as recordações da minha vida.

E a roseira continuou a florescer na sua inocência, enquanto o caracol dormia dentro da sua casa. O mundo nada significava para ele.

Passaram os anos.

O caracol voltou à terra, o roseiral também, e a célebre rosa do livro de orações desapareceu. Mas, no jardim, brotavam novas roseiras e os novos caracóis arrastavam-se dentro das suas casas, pensando no mundo que nada significava para eles.

Voltamos a ler a nossa história desde o princípio? Não, não vale a pena: seria sempre igual.


Hans Christian Andersen nasceu em Odense, 1805, e morreu em Copenhague, 1875. O notório escritor dinamarquês teve uma infância pobre, mas enriquecida com as histórias que seu pai, humilde lhe contava, encenando com bonecos. Após a morte do pai, fugiu de casa e aos 14 anos começou a trabalhar no Teatro Real, em Copenhague. Andersen foi ator, corista, bailarino e autor. A maior parte de seus estudo foram financiados pelo diretor de teatro Jonas Collin. Entre outras obras, publicou: O Improvisador (1835), Nada como um menestrel (1837), Livro de Imagens sem Imagens (1840), O romance da minha vida (autobiografia em dois volumes, 1847). Ganhou renome com os contos (Histórias e Aventuras) para o público infantojuvenil, publicada de 1835 a 1872. Há farto material na web sobre o grande mestre.  

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