terça-feira, 17 de março de 2015

Mario de Andrade: Acalanto do Seringueiro

Há setenta anos morreu Mario de Andrade. Talvez, hoje em dia (?) seja um autor mais falado do que lido. Atropelando conceitos e ou audaciosamente lírico, Mario de Andrade sempre surpreenderá o leitor distraído. Como em mais duas postagens que farei aqui no Falas ao Acaso. Hoje, do livro Clan de Jabotí, publicado em 1927, o sensual Acalanto do Seringueiro. Ontem, em homenagem a Manuel Bandeira, o belo poema n°. 3 do "Rito do Irmão Pequeno”, de 1931. Os dois poemas encontrei em Antologia da Moderna Poesia Brasileira - Revista Acadêmica, 1939, edição da Brasiliana Digital-USP.


            

Acalanto do Seringueiro
Mario de Andrade

Seringueiro brasileiro,
Na escureza da floresta
Seringueiro, dorme.
Ponteando o amor eu forcejo
Pra cantar uma cantiga
Que faça você dormir.
Que dificuldade enorme!
Quero cantar e não posso,
Quero sentir e não sinto
A palavra brasileira
Que faça você dormir...
Seringueiro, dorme...

Como será a escureza
Desse mato virgem do Acre?
Como serão os aromas
A macieza ou a aspereza
Desse chão que é também meu?
Que miséria! Eu não escuto
A nota do uirapuru!...
Tenho de ver por tabela,
Sentir pelo que me contam,
Você, seringueiro do Acre.
Brasileiro que nem eu.
Na escureza da floresta
Seringueiro, dorme.

Seringueiro, seringueiro,
Queria enxergar você...
Apalpar você dormindo,
Mansamente, não se assuste,
Afastando esse cabelo
Que escorreu na sua testa.
Algumas coisas eu sei...
Troncudo você não é.
Baixinho, desmerecido,
Pálido, Nossa Senhora!
Parece que nem tem sangue.
Porém cabra resistente
Está ali. Sei que não é
Bonito nem elegante...
Macambúsio, pouco fala,
Não boxa, não veste roupa
De palm-beach... Enfim não faz
Um desperdício de coisas
Que dão conforto e alegria.

Mas porém é brasileiro,
"Brasileiro que nem eu...
Fomos nós dois que botamos
Pra fora Pedro II...
Somos nós dois que devemos
Até os olhos da cara
Pra esses banqueiros de Londres...
Trabalhar nós trabalhamos
Porém pra comprar as pérolas
Do pescocinho da moça
Do deputado Fulano.
Companheiro, dorme!
Porém nunca nos olhamos
Nem ouvimos e nem nunca
Nos ouviremos jamais...
Não sabemos nada um do outro,
Não nos veremos jamais!

Seringueiro, eu não sei nada!
E no entanto estou rodeado
Dum despotismo de livros,
Estes mumbavas que vivem.
'Chupitando vagarentos
O meu dinheiro o meu sangue
E não dão gosto de amor...

Me sinto bem solitário
No mutirão de sabença
Da minha casa, amolado
Por tantos livros geniais,
"sagrados", como se diz...
E não sinto os meus patrícios!
E não sinto os meus gaúchos!
Seringueiro dorme...
E não sinto os seringueiros
Que amo de amor infeliz...

Nem você pode pensar
Que algum outro brasileiro
Que seja poeta no sul
Ande se preocupando
Com o seringueiro dormindo.
Desejando pro que dorme
O bem da felicidade...
Essas coisas pra você
Devem ser indiferentes.
Duma indiferença enorme...
Porém eu sou amigo
E quero ver si consigo
Não passar na sua vida
Numa indiferença enorme.
Meu desejo e pensamento
    (... numa indiferença enorme...)
Ronda sob as seringueiras
    (... numa indiferença enorme...)
Numa amor-de-amigo enorme...

Seringueiro, dorme!
Num amor-de-amigo enorme
Brasileiro, dorme
Brasileiro, dorme.
Num amor-de-amigo enorme
Brasileiro, dorme.

Brasileiro, dorme,
Brasileiro... dorme...

Brasileiro...  dorme.

*
Ilustração de Joba Tridente



Mário Raul de Moraes Andrade (1893-1945) foi escritor, crítico literário, musicólogo, folclorista, ensaísta e um dos mais representativos e influentes autores no movimento modernista brasileiro A sua obra desconcertante ainda continua de vanguarda. Há, na web, um bocado de bom material biográfico sobre o autor. A sua bibliografia pode ser conferida na postagem anterior: O Poeta Come Amendoim.

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